quinta-feira, 8 de maio de 2008

A gargalhada macabra

“Deixai-nos rir.”
Fragmento da Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios
Antonin Artaud[1]



A arte traz alguma dose de delírio. Fazer é arte desterritorializar um mínimo de sensações, mexer com os perceptos. Criar sentidos, produzir outras realidades, inventar novos mundos. Arte e loucura, sempre de mãos dadas. Ambas como parte de um território de miragens, construído sobre reflexos, pequenas cartas, cartões, fotografias, quadros, quadrinhos, retalhos de ilusão. Uma coisa engolindo a outra e o que vem a seguir, matéria e substrato do que já foi. A genialidade da arte é a construção de um universo que se alimenta de si mesmo, em sucessivas gerações de imagens e produção de fantasias. Enquadramentos, infinitas linhas retas definindo zonas paralelas e perpendiculares, cartas de baralho. Na indústria do entretenimento tudo é um jogo, o mais sangrento dos combates é pura diversão. “Quando vi que piada de mau gosto era este mundo, preferi ficar louco, admito”, diz o vilão Coringa em uma história em quadrinhos chamada A Piada Mortal.
Fragmento 1: Coringa, o popular inimigo de Batman, é artista. Aparece como um comediante, um artista que quer para si as atenções da mídia. Também é figurado como artista plástico em um concurso de artes no episódio “A escola de Coringa” do seriado televisivo Batman e Robin[2]. Bruce Wayne, identidade civil de Batman, vai a um concurso onde cada participante faz uma obra de arte. Há alusões à obras de famosos artistas contemporâneos: espirros de tinta (Jackson Pollock) e impressão do corpo sobre uma superfície (Yves Klein). O vencedor do concurso é Coringa, que simplesmente deixou a tela em branco. O sucesso do concurso faz com que Coringa abra uma escola de artes para os milionários de Gotham City. Wayne acha tudo ridículo, mas, desconfiado, freqüenta a aula do Coringa. Os trabalhos abstratos dos alunos são elogiados pelo bandido, que considera a escultura clássica de Wayne “ultrapassada”. Quando Wayne questiona seus motivos, o vilão chama seus capangas e o capturam. A escola do Coringa era uma armadilha para caçar milionários. Como Batman poderia vir socorrer às vítimas em apuros, se estava acorrentado entre elas? Somente sabemos como a situação se reverte no episódio seguinte.
Fragmento 2: Batman, o filme, dirigido por Tim Burton[3]. Cena em questão Coringa e seus capangas entram no Museu de Artes, liberando um gás paralisante que derruba todos os presentes. Chegam com latas de tintas coloridas. É uma performance, tudo se agita e Coringa coordena a pintura. Quadros seculares, obras de Rembrandt, Renoir, e Degas, são arrasados com mãos e pincéis. Em uma paisagem urbana de David Hopper, Coringa escreve no muro: “Joker was here”. De repente Coringa manda seu capanga parar “Gosto deste. Não destrua”, diz para o rapaz pronto a rabiscar tinta por cima de uma obra. O quadro em questão era uma pintura de Francis Bacon[4], cujo destaque sobre o fundo preto são duas costelas penduradas atrás de um pálido rosto humano distorcido.
Coringa[5] é um psicopata cruel. Assassina pessoas com produtos químicos que deformam seus rostos de modo que padecem rindo. Personagem ao qual se atribui “assassinato em massa, tortura e terror” (Dixon e Nola, 1997) o sorriso ácido do Coringa estampa uma cadavérica risada letal causada por um acidente ocorrido em uma indústria química. Criado por Bob Kane em 1940, Coringa aparece em várias histórias nestes sessenta e poucos anos que contracena com Batman no mundo criado entre histórias de detetive. “Você nunca saberá o que é o verdadeiro mal até conhecer o Coringa”, diz Batman para o Super-Homem, desafiando-o a conhecer os horrores de Gotham City (Kesel, 2002).
Na história de Alan Moore A Piada Mortal, fragmentos da narrativa mostram um homem desempregado, com a esposa quase ganhando um bebê e sem dinheiro para pagar seque o aluguel do quarto em que vivem. Tenta vários empregos, aquele comediante “fracassado” de quem ninguém ri das piadas. Vai ajudar alguns ladrões a arrombarem uma indústria de produtos químicos (na qual foi funcionário) para roubarem uma fábrica de baralhos. A esposa morre eletrocutada ao experimentar um aquecedor de mamadeiras e ele tenta desistir do assalto, mas é ameaçado e precisa prosseguir. Os guardas o abordam e na fuga ele cai num tonel de produtos químicos. Em seu bolso, a carta do baralho que ocupa o lugar de qualquer outra: o coringa, com roupas de palhaço, misto de arlequim, pierrô e bobo da corte. Um homem que sempre está rindo, mas de quem ninguém ri, o patético fracassado, motivo de chacota mas também aquele de quem ninguém acha graça.
No filme de Tim Burton[6], o escritor Sam Harnm faz do bandido um monstro cujo acidente no tonel de produtos químicos acontece por causa da perseguição de Batman. Devido à frase que o vilão, neste filme, diz para suas vítimas: “Já dançou com o diabo a luz do luar?”, Batman/Wayne descobre que fora ele quem havia matado seus pais. Coringa acusa Batman de o ter criado, mas Batman retruca dizendo “você me criou primeiro, matando meus pais”. No universo de Batman, Coringa possui várias histórias sobre o seu passado: “se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha” (Moore, 1988), diz para Batman quando conta que foi um dia ruim que o deixou louco.
Na história Coringa, o Advogado do Diabo, o psicopata é acusado de distribuir selos da série “grandes comediantes” envenenados, que matam as pessoas que os lambem com a conhecida risada mortífera. Como em todas as histórias de Batman, a mídia está sempre presente: “a família das vítimas não acharam graça nessa brincadeira”(Dixon e Nolan, 1997), diz a repórter de televisão. A capa da edição apresenta Coringa com a língua de fora mostrando um pequeno selo na ponta, estampado com sua própria cara: “um grande comediante”. O papel na língua é possivelmente uma alusão indireta ao ácido lisérgico e aos papeluchos pelos quais é ingerido. A loucura de Coringa é, de algum modo, referente a alterações químicas que produzem distorções que se fazem ver através do semblante alucinado dos drogados em estado de delírio.
Em A Piada Mortal, Coringa foge do Asilo Arkham e toma um parque de diversões abandonado. Entra na casa do comissário Gordon, atira em sua filha (que em outras histórias é a Batgirl) e o captura. Coloca Gordon em um trem fantasma onde o velho policial é assombrado com fotos da filha nua, baleada e violentada. Batman acode o homem, que fora colocado, em estado de choque, em uma jaula. O psicopata aguarda Batman com armadilhas na “Casa Maluca” do parque de diversões. Pouco importava para ele se Batman o levasse de volta ao asilo, seu objetivo era provar a Batman que um dia ruim pode fazer alguém mudar: “Mostrarei que não há diferença entre mim e outro qualquer. Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu... Apenas um dia ruim”. A loucura de Batman, um dos poucos super-heróis sem poderes sobrenaturais, também vem de um dia ruim. Coringa quer saber que dia foi esse. “Seu dia ruim o deixou tão louco quanto qualquer um. Só que você não admite... Prefere continuar fingindo que a vida faz sentido... Que vale a pena todo esse esforço!”, diz Coringa, escondido atrás de tapumes com caras de palhaço, para Batman (Moore, 1988).
O personagem, cujos crimes são assinados com a carta homônima do baralho, é uma releitura maléfica do nobre palhaço Gwynplaine, protagonista de um filme de 1928, O homem que ri, inspirado na novela de Victor Hugo (1869). É a história de um jovem Lord inglês do século XVII, ao qual o Rei, vingando uma traição feita pelo pai do rapaz, manda arrancarem os lábios fora. Com a carne mutilada em volta da boca, seu semblante traz a boca escancarada num sorriso permanente, transformando-o num personagem teatral. Este é um exemplo de como, na indústria do entretenimento, tudo é citação, uma coisa referida a outra e outras tantas. Filmes e desenhos animados citam quadrinhos que citam filmes mudos, que citam a literatura do século XIX, contos da tradição oral e mitos clássicos. Não há limite para a constante recriação de ícones e de narrativas. Uma imagem copiada de outras, imagens copiadas de uma imagem em variadas possibilidades cambiáveis. Os vetores são muitos e as ligações podem infinitas. A invenção é uma reinvenção sobre o que se inventa continuamente. A única diferença é a proliferação de invenções, eternamente se multiplicando, aparecendo com efeitos visuais que as tornam cada vez mais verossímeis, cada vez mais intrincadas com o mundo real.
Batman, de acordo com seu criador, Bob Kane, foi criado com inspiração nas máquinas de vôo projetadas por Leonardo da Vinci[7], entre outras influências, como a novela radiofônica The Shadow e o filme The mark of Zorro, veiculados nos anos vinte e trinta[8]. Batman surgiu como detetive disfarçado em 1939, um ano após a aparição de Superman. Naquela época, as histórias em quadrinhos eram consideradas inferiores à arte, seu desenho era tido como grotesco e a pintura, de mau gosto. No longa-metragem e no seriado para televisão dos anos 60, Batman é colorido e está dentro do que hoje se entende como estética pop. Depois dos filmes de Tim Burton e da série O Cavaleiro das Trevas, Batman virou um super-herói ao estilo gótico, levando este traço sombrio para as atuais séries animadas de televisão. A transformação dos heróis acompanha tendências, precisa ser sempre atual, sob o risco de deixarem de ser sucessos e pararem de vender. É um campo constituído em interdependência com as reações do público. Em novembro de 1988, Dennis O’Neil dá a seguinte explicação sobre o assassinato do segundo Robin, de alter-ego Jason Todd:
“ (...)essas sagas são mais do que mero entretenimento, pelo menos para muitos leitores. Elas são o equivalente pós-industrial das narrativas folclóricas e como tal, atingem profundamente nossas mentes. Mas, como histórias folclóricas tradicionais, os super-heróis devem evoluir. Se não fizerem isso, eles se tornarão irrelevantes para o mundo que realmente espelham e perderão o poder de satisfazer e divertir. Eles correm o risco de degenerar em meras curiosidades em vez de permanecerem como ficção vital (...). ” [9]

A interatividade com o público já estava presente no final dos anos oitenta, pois foi uma votação por telefone que definiu que o “menino prodígio”, como Robin era chamado, deveria morrer. Quem o mata é Coringa. Depois desse fato, Batman passa a ser um herói solitário, implacável e cruel. A ambigüidade de sua figura, transitando entre a loucura e a sanidade, passa a ganhar espaço nos roteiros. Seus traços psíquicos são sutilmente explorados e todo o lay-out de suas produções ganha um caráter mais sombrio. Acontecimentos deste tipo demandam que o público dos quadrinhos transite sobre os universos dos super-heróis a fim de entender o encadeamento das tramas e as freqüentes citações entre os fatos ocorridos. Quadrinhos no início dos anos noventa são cults, produções dirigidas a um público especializado[10]. São fãs ávidos pelo fantástico, conhecedores de toda uma mitologia precedente que envolve universos complexos onde várias sagas dizem respeito entre si. Para entender o universo Dc, do qual Batman faz parte, é preciso saber um pouco sobre a Crise nas Infinitas Terras, episódios do final dos anos 80 que recriaram os mundos nos quais viviam heróis e vilões. Nesta fase, descrita como reorganização do universo de Batman, Super-Homem e Mulher Maravilha, temos o reaparecimento do Monstro do Pântano, metamórfico herói que se constrói com a matéria vegetal que tem a disposição. A “crise” é uma espécie de apocalipse, uma luta contra a anti-matéria que tenta dominar o universo criado. A psicodélica criatura botânica é o único ser capaz de penetrar no vazio da anti-matéria do universo “negativo” e incriado. O que é descrito nas sagas do universo DC Comics, narra o momento de alterações e fusão entre todas as terras paralelas, o multiverso de mundos concomitantes. Heróis de mundos diferentes se encontram nas zonas de “distorção” de tempo-espaço, mesclando presentes, passados e futuros. Super-homens de terras paralelas, todos com uniformes quase iguais, atuam juntos para vencer o monstruoso monitor de anti-matéria, viajando até a aurora dos tempos. O mundo se funde e a partir daquela alteração, só um universo passa a existir, um só passado e um só presente, que geram “paradoxos que não podem ser explicados” (Wolfman, 1989, p.69)
É nesse universo pós-crise que surgem produções como o álbum especial Asilo Arkham (1990), recheado com citações psicanalíticas e esotéricas para provar que nem mesmo Batman é “exatamente normal”. Em uma noite de lua cheia, os loucos (todos vilões a quem Batman combateu) conseguem amotinar o hospício e exigir a presença do homem-morcego, um louco que devia estar entre eles. A entrada de Batman e sua aventura dentro da casa da insanidade é intercalada com a terrível história do psiquiatra criador do lugar, Amadeus Arkham, que teve e mulher e a filha, ainda criança, violentadas, assassinadas e decepadas por um bandido chamado Mad Dog, o primeiro paciente a ser tratado pelo médico. A imagem do arcanjo Miguel e do dragão surgem como uma metáfora da batalha contra a loucura, velha conhecida de Arkham, cuja mãe morreu atormentada, reclamando de estranhos ruídos. Este, reformando a casa que herdou para transformá-la num hospital psiquiátrico, vai a Suíça procurar Jung, que na ocasião despontava no cenário psicanalítico com seus estudos sobre esquizofrenia. Em sua viagem ao Velho Mundo, Arkham também trava contato com o bruxo Alesteir Crowley[11], cujas cartas malditas de seu baralho de tarô são estampadas ao longo dos quadrinhos. Num quarto secreto onde o psiquiatra louco viveu o fim de seus dias, suas anotações, escritas a unha pelo chão e pelas paredes, contam que sua mãe havia enlouquecido por causa de um morcego preso embaixo de sua cama. Batman se mistura com a maldição exalada pelas paredes da casa, enfrenta os fantasmas de Arkham e o dragão da loucura. Vencidas às adversidades e controlada a situação, Batman vai embora. Coringa, o amigável anfitrião de Batman, que passa a mão em sua bunda e faz piadinhas sobre Batman manter as pernas depiladas, é quem lhe dá o “adeuzinho”, lamentando a separação: “não pode reclamar que não se divertiu” e deseja que continue se divertindo “lá fora, no asilo” (Morrison, 1990).
Este ensaio foi uma análise apresentada em minha Proposta de Tese, Anatomia do Dragão: imagens do mal na indústria do entretenimento, julho de 2002.
[1] Cf. Lins, 1999, p.104.
[2] Seriado norte-americano produzido por Willian Dozier para a rede de televião ABC, foi ao ar de janeiro de 1966 a março de 1968. Batman era interpretado por Adam West, Robin por Burt Ward e Coringa por César Romero.
[3] Batman, 1989 (Cf. Filmografia). Coringa foi interpretado por Jack Nicholson.
[4] Figure with Meat, 1954.
[5] Na edição especial Asilo Arkham a psiquiatra Ruth Adams explica para Batman que “Coringa é um caso especial. Muito de nós acreditam que ele está além de qualquer tratamento (...) Não estamos certos de que ele possa ser definido como insano. É bem possível que estejamos diante de um caso de super sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana.(...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo. Sua mente só pode lidar com a barragem caótica de estímulos deixando-se levar pelos fluxos. Por isso , alguns dias ele é um palhaço infantil. Outros, um psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Coringa se vê como Mestre do Desgoverno. E o mundo como um teatro do absurdo” (Morrison, 1990).
[6] Diretor da animação O estranho mundo de Jack e de filmes fantasmagóricos como Eduardo, mãos de tesoura e A lenda do cavaleiro sem cabeça.
[7] “As invenções bélicas de Leonardo são mais visionárias do que práticas. Suas concepções estão muito além das máquinas projetadas no século XV. Pode-se dizer que sua engenharia tendia mais ao miraculoso do que ao possível. Por isso é um artista e não um cientista ou tecnólogo” ( Mannering, 1981, p.32).
[8] Capturado em: http://www.nytimes.com/learning/general/featured_articles/981109monday.html
[9] Prefácio para a edição especial A morte de Robin (ver referência das histórias em quadrinhos).
[10] Devido a pouca rentabilidade, em julho de 2002, a editora Abril pára de publicar as sagas mensais de super-heróis da DC Comics, sendo que doravante somente comercializará produções especiais relativas a este universo.
[11] O mago inglês Alesteir Crowley, que se auto denominava “A Grande Besta”, nas primeiras décadas do século XX rompeu com a ordem mística Golden Dawn e criou um sistema irreverente de magia. Foi quem fez o mapa astrológico de Fernando Pessoa, com o qual travou alguns diálogos. Passou a ser idolatrado pelos místicos dos anos sessenta porque misturou arte, magia, sexo e bebidas alucinógenas na busca do êxtase.

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