quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

xamânica

na primeira tragada mandei embora um sonho
com a fumaça expelida
orei
pelos espíritos famintos
que a misericórdia atende
enquanto o índio
saudável
esse conceito ignora
pois
nada diz
do que tinha como virtude
e jamais viu
algo assim
no mundo pálido
que o devora

cansei do branco das paredes, do gris cimento e quase negro asfalto, essa apatia das pastilhas, ainda que todo dia seja preciso render culto para a santidade das lajes, ó pisar no planificado, sem o qual uma mulher jamais poderia erguer-se em saltos
de unhas feitas, esmaltadas
ser civilizado é ter superfícies a limpar
as tintas são grandes invenções, já a parede reta é só uma simplificação de carpintaria
pintar é primeiro
construir reto uma maneira de facilitar as coisas
mesmo que o gosto ame contornos
e exija rodopios

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

ditos

Boas palavras não acabam, nem o sol mesmo escondido atrás das nuvens, quando nos escondemos do outro lado da terra, para ele oculto nos sofrimentos e delícias da noite; não acabam os tipos, senão em incidência a partir do chão. O tempo passa e boas horas os deuses nos dão. As coisas rangem, as pessoas trepam, as fossas entopem, tudo pede manutenção. Palavras são boas porque nelas algum sentido se perdura no desenho gráfico-sonoro que acompanha a vida. Paisagem lingüística, que existe para eternizar o nada. Fora das palavras uma espiral circundante à falta de significado de tudo isso. Palavras inúteis se vão, num pensamento fraco demais para virar ação.

o que eu queria te dizer

depende muito do que tu achas, ainda que nunca encontres o que de mais sério perderias, sem nem mesmo querer pensar o quanto é caro esse sentimento

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

machucador

macho
machuca sempre

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

ter é o que menos interessa nos encontros que nos despossuem
posse não faz o ser
estranho a todo território

sem prisões

Deixar de amar é impossível. Deixar de querer é fácil. Não queremos nada que perturbe. Se um amor perturba, mais do que não o querer, amamos a perturbação que o amado nos traz. Os amores se desgastam na medida em que deixam de perturbar aquilo que julgamos querer. Não quereríamos amar, salvo se amassemos perturbações. Gastos, amores afirmam sua força na reiteração de um quase esquecido querer. Não querer mais um amor é exauri-se de amar por não ser mais querido. Deixa-se de querer porque o amor não mais voa.

amor imenso

Só se sabe quando se ama quando a morte do amado parece insuportável. Amam-se olhos claros porque é neles que se vê um orgasmo acontecendo na pupila.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

para

o poema: a vida
os destemidos: o inédito
os exauridos: respiro
os eruditos: expiros
os falidos: crédito
o frio: lã
os crentes: débitos
os famintos: pão
a pele: hortelã
peitos caídos: sutiã
o problema: o amanhã
o dilema: a escolha
chegar mais rápido: carro
encontrar saídas: perigo
andar mais lento: olhar a paisagem
fartura: trabalho
namorar: grunhido
feiúra: plástica
chorar as mágoas: um amigo
idade futura: ginástica
alegrar-se: música
cantar: ouvido
limpar: sentido
ter arte: dor
para acabar, a partida
seja o que for

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

de um canalha

Ai bonitinha, tudo o que eu queria era te pegar gostoso. Torcendo que leve jeito na pegação. Fofinha, cheirosa, lindinha, lisinha. Podia ser outra coisa? Ter rugas? Carnes flácidas sob os braços? Manchas? Sola do pé grossa? Suores sob o cabelo que não se ajeita? Caatinga na virilha? Aí serias gasta e velha e nem tudo o que sabes, por mais que tenhas jeito, ia interessar. Como essa conversa tola que finjo ouvir para melhor olhar teu delicioso decote. Qualquer coisa que eu diga, desde que mostre o quanto és mastigável, ajuda a levar teu monólogo adiante. E diante dele, arrasto minha conquista. Mesmo sabendo que, uma vez saciado, vou te abandonar. Porque mereces, bonitinha. Porque se tu pensasse, não deixaria isso acontecer.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

porque a bestinha merece

Se entrasse, ninguém diria que foi por mérito. Ganha dez vezes mais do que um professor universitário porque não tem pudores para vender. Nunca se vendeu, mas isso é uma questão de ângulo do produto. Não julga que embalagens sejam riscos para o planeta. Nem pensa no problema dos consumos desenfreados. Consegue as coisas porque seduz as pessoas certas. Só posaria nua se fosse uma boa jogada de marketing. Mas não vai se indispor com o empresário que fez dela outra coisa. Depois de vários retoques. Alguns cirúrgicos, outros educacionais. Preenchida de marcas, atabalhoada de grifes. Ama fazer compras. Para os bossais que, secretamente encontra, a acharem chique. Só homens importantes, graduados. Casados, para não arranjar problema. Porque já passou muito trabalho e agora foi convidada a escrever um livro. Dois editores esperam que fique pronto. Vai ter que pedir ajuda, mas não tem a menor idéia para quem.

litorânea

uma manhã, muito sol e nenhuma palavra




vôo
veio vento
vai a nuvem
vibra estrela
vem azul

vivo vendo
a voz da luz
vindo
voraz
em brilho veloz

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

temporal

e quando a tempestade vem
nada segura
a vontade de voar
levada no vendaval

domingo, 10 de fevereiro de 2008

silêncios e fugas

Foge de muita gente. Porque não tem paciência de escutar a mesmice que elas falam. Porque não tem tempo para deter-se em vidas pouco notáveis. E principalmente porque considera as pessoas que se evita chatas, muito chatas. Pelo tipo de assunto e pelo tipo de sentimento, pois querem sempre alguma coisa. Um aval, um parecer, um olhar de quem elegeram ideal. Por outro lado, há os que solicitam nem que seja para abominar coisas irrelevantes, como colocar cascas dos vegetais nos canteiros, arrancar as flores do próprio jardim, secar folha por folha, para a salada, individualmente. Coisas que, sempre que possível, é bom se fazer. Pouco se cala. Há sempre uma palavra, que afasta ou contempla os chatos que solicitam. Ao responder, dá-se destino aos corpos que exigem algo. Somente se ignora quando se trata de algo que realmente não chama. Por pior que seja, atende-se, pois só assim se pode, verdadeiramente, deixar de ser incomodado.
Uma única pessoa foge ou simplesmente ignora. Embora não espere nada, sim, talvez queira demais, visto ter colocado em alguém o posto ideal. E isso é o suficiente para ser desagradável. A ponto de pouco suportar ausências, mesmo que elas nada signifiquem. Porque talvez até esse eu, extraordinário e muito solicitado, tenha seu aspecto chato, nada notável, nem um pouco necessário e completamente repetitivo. É bom saber como os outros se sentem. Mas muito difícil jamais compreender o que imobiliza um específico outro e o afasta. Ainda mais na consciência de uma nula importância, na certeza de uma irrelevância e nesse eterno exercício de desprendimento, esse jogo de esquecer e não guardar nenhuma delícia impossível, ignorando as dores que certo silêncio arrasta.

lágrima

Enquanto verter, há salvação.

água

Nada benta. Mas sempre benfazeja. Quando estiar, planta-se. Quando tudo está seco, reza-se. Sem ela, morre-se. Embora ela mate.

muita chuva, cinzas confortantes e toda eloqüência desse trabalho

sábado, 9 de fevereiro de 2008

ascese

Resistir é necessário. Não ceder ao impulso surdo, cego, insensível. Para sorver o mínimo, em toda sua plenitude. Máximo de força.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

madrugada

A noite avança em busca de alguma coisa que, enquanto a maioria dorme, não vem. Porque só o que chegará é a alvorada. Rósea e cheia de promessas de verão. De menos trabalho. Ignorando listas de tarefas que, para as férias, se acumulam. No céu, relatórios não servem para nada. Nenhuma palavra é capaz de exprimir a beleza da luz no filtro dos gases da atmosfera. Num amanhecer morno que o esplendor solar não descreve. Hora incerta, boa para se deitar.

mesmice
Quem fala sempre a mesma coisa de repente nem percebe que fala sempre a mesma coisa. Quem escuta deve gostar de escutar a mesma pessoa falando sempre a mesma coisa. Quem fala sempre a mesma coisa deve ser porque sempre tem as mesmas coisas na cabeça. Não mudar a cabeça é não perceber que as coisas que se tem nela sempre são as mesmas.

questão inevitável
Será que eu falo, sempre, as mesmas coisas? Ou ainda não envelheci o suficiente, para gastar os mesmo ditos nas sempre mesmas falas para quem, nem sempre antes, me escutou?

aos titulados

Mostrar a miséria é fácil. Criticar o status quo não adianta nada. Enquanto se permanece na facilidade da acusação, nenhum outro real se faz. O que se come é alimento ou lixo de acordo com o ponto olfativo daquele que luta em busca de comida. Usar a catação alheia na sedimentação de idéias socialistas obsoletas não passa de um recurso de quem mal separa o seco do orgânico. Porque não sabe que público é uma abstração para lugar algum e que o privado só interessa aos que vivem de olho em algumas celebridades. Não milhões ocupados com suas próprias vidas, ainda que apatizadas pela vacuidade das televisões. Desprezar o povo é a maneira mais fácil de jamais mudar alguma coisa. Contabilizar a morte como desculpa para o horror social generalizado é canalice. Reclamar da educação, da falta de cultura, dos problemas de letramento e outras atrocidades da dita cultura de massas, uma estratégia mais que batida. Orgulho, só o que a música dá, na batida do samba, no retumbar das caixas, no quebrar dos quadris. Das velhas conversas ao pé do fogo, todo orgulho é apenas tênue e instável tradição. Ufanismo só para não se viver de ufs cansativos por ter que se agüentar ladainhas infames. Antes, a genialidade dos reclames de coisas que mal sabemos o que é e nem iremos comprar. Em primeiro lugar, as pequenices pequenas de quem pouco pede. E não impele quem muito faz e pouco esbraveja a urbe que lhe coube. Grandes soluções somente por mínimas vias. Conceitos só funcionam para sustentar práticas. Mudar a fachada da casa com as próprias mãos, usando despojos, é pelo menos alguma coisa.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

ilusão

comidas não sobram nem faltam
tudo fica limpo
todos querem a mesma harmonia
e fazem sua parte
sem ninguém acabar
sobrecarregado
explorado
se sentindo idiota
ouvindo discurso
miserável
de quem nem estende sua cama

saída

correr para onde se trabalha dançando

fuga

Quando o troço começa a pegar a vontade que dá é sair correndo.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

ultrapassagem

Todo esse sono e nenhuma possibilidade de descanso. Tanto cansaço sem chance de ser eximido. Aceitar o fado. Nem que seja movendo o corpo com litros de café. Não há trégua. A batalha não cessa e nessa guerra ninguém ganha. Apenas se vai. Porque de outro jeito, não se seguiria. Parado se morre. Não reclamar cria cânceres. Mesmo estropiados, continuamos a lutar. O limite não existe. Somente no adormecimento de quem o inventa. Vencer as privações é possível, privar-se do sono põe guerreiros em ação. Ir adiante, nem sonhando.

quem trabalha todo dia precisa de cama

Não há no mundo lugar para essas fraquezas que te colocam deitado. A pressão baixa e quem leva a vida a sério continua na labuta. Levar a vida seriamente é trabalhar para poder rir da falta de sentido de tudo isso. Sem dores por sucumbir. Até mesmo nos feriados. Numa vontade nula. A necessidade de fazer tudo obriga a continuar. Sem férias nunca. Tréguas são ilusões de quem não se responsabiliza. Só se entrega quem não tem que servir ao mundo. Esse mundinho cão que cansa os preguiçosos e oprime os salafrários que querem colher plantio alheio. Aos deitados, nenhum lugar.

leve como pluma

Quem junta tudo o que se espalha? Uma violência sutil. Quem recolherá as roupas? Sentida quando a máquina creditada essencial quebra. Quem preparará os alimentos? Entregas sagitais. Quem tira a sujeira do chão? Leituras caprinas. Quem lavará o box? Exposições aquarianas. Quem desencardirá os panos? Chip queimado. Quem limpará as aberturas marcadas? Neurônio nulo. Quem lavará a louça? Reiniciações indevidas. Quem costurará os rasgos? Crônicas ridículas. Quem recolherá brinquedos? Ignorância de novos textos. Quem vai tirar as cacas da geladeira? Erros de salvamento. Quem molhará as plantas? Arquivos perdidos. Quem limpa o fogão? Doses cavalares de força de vontade. Quem cortará as frutas? Lágrimas porque a lista é longa. Quem guarda os pratos? Saco para se livrar das malas. Quem dobrará as blusas? Beijo para apaziguar as dores. Quem varrerá a casa? Fugas para encontrar o que mais foge. Quem estenderá as camas? Surras nossas de todo o dia. Quem conferirá a conta? Sentar é um luxo que alguém não pode se dar. Quem amarrará as alças? Tarefas de departamento. Quem levará o lixo? Ginástica para agüentar. Quem baterá o bolo? Dores precisam ser suplantadas. Quem podará as moitas? Tabefes do corpo nos móveis. Quem atenderá o telefone? Demandas absurdas. Quem marcará consultas? Morrer é a única maneira de descansar. Quem leva e traz fulano, sicrano e beltranices? Frustrações bestas. Quem penteará cabelos? Dever de esquecer. Quem atenderá as crianças? Ninguém por trás da ação. Quem cobrirá os inocentes a dormir no frio? Pressão eterna. Quem fechará as portas? Alívio somente quando apagam as luzes. Quem polirá os vidros? Capricho não é coisa que se preze. Quem fará arranjos para alegrar a vida? Ainda não ficou bom. Quem tirará o pó? No descompasso do tempo as horas estrangulam aqueles que as contam.

Com uma faca, se perfura
Com colher
Te dou remédio
E cura

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

minimal barroco

Um ponto brilhante na pele. Só aparece quando em ângulo exato frente uma luz. Espelho para artrópodos de dimensões irrelevantes. Almoço vazio. Talheres nus. Nenhuma invencionice. Ainda que a popularização da cutelaria somente as Luzes fez possível. Comer sem tocar o alimento com as mãos, misturar especiarias de oito continentes. Descontar a trabalheira que todo serviço de mesa dá nos dejetos que a descarga manda embora. Na energia que a limpeza gasta. Para tudo ficar brilhando. Não mais purpurina grudada pelo suor da festa, mas prataria mundana solenemente enfileirada nos compartimentos que diferenciam garfos, facas, colheres a partir de todos tamanhos e funções.

Uma única margarida, sublime, esquecida.

horizonte

Sem posição, visto que em trânsito. Qualquer posicionamento é inócuo, o que se avista é impermanente. Uma paisagem permanece. Sempre mutável em formas, luzes, linhas e outros elementos a serem debulhados. Nada decora, pois é. Não consegue ser classificado: não é público, não é próprio, não é de ninguém. Define-se como ilusão ótica. Na dependência de pontos de fuga escolhidos por humanos olhos situados na terra. Plano frontal, apenas. Pode até dizer do que se vê adiante, mas jamais expressa o lugar onde aquele que o abstrai está.

perspectivismo e demais absorções

1. Isso vem a ser o mesmo. O já sabido. Digerido. Qualquer interpretação não satisfaz. Queremos fruição. Gozo. Inquietação que faz pensar. Eternamente nos sacudindo com coisas muito mais duras que as palavras usadas na elaboração de um conceito. Rebater teses não é criar. Outra perspectiva é somente mudança de foco. Reposicionamento. Interessa é a viagem empreendida para ir até o lugar onde veremos o nosso pelo avesso. Sem a ilusão de que as incursões até nossos pontos nos mostrem algo melhor. Mudando somente porque a paisagem sempre do mesmo lugar cansa.

2. Não se trata de culpar ou inocentar o homem. Apenas aceitar que da porra emitida por ele viemos. Com Deus, sem deus, no deleite das mil forças em jogo com todos tipos de deidades. Santas e profanas. Com suas reviravoltas nada científicas. Danças que não se encontram nas explicações. Pouco filosófico, o movimento foge de um interpretante doutrinário. Da vida, fica-se sem compreensão. Nela apenas criamos: as dores impingidas aos corpos e as árduas tarefas que a terra exige. Uma vez sendo humano, tende a ocultar cadáveres. Para que não apodrecem sob os olhos. De modo a ninguém poder dizer que a podridão é do mal.