terça-feira, 29 de abril de 2008

desvalia nossa de cada dia

Somos enganados, estamos cansados de saber disso. O que não entendemos é que não há alguém específico mentindo ou não querendo nos ajudar. As coisas dão erradas porque são assim mesmo. Por puro azar. Ou incompetência política. Ou ingenuidade pura. Quem sabe entender o funcionamento dessa luta por espaço que nos massacra? Ser humano assusta. Crianças são atiradas pela janela depois de estranguladas por estresse dos responsáveis. Uma filha é mantida em cativeiro, netos-filhos jamais vêem a luz do sol. Os deprimidos crônicos têm lá sua verdade. A vontade de desistir fica enorme. Sem mágoas, apenas indignação. Na nula dignidade de colocar-se no lugar do outro. No arfar diário de poeira ingrata escondida nas salas de aula. Entre as paredes que nos confinamos para envelhecer. Onde nada se afirma senão o tédio de uma vida dedicada ao reles reconhecimento daqueles que na mesma canoa afundam. E a Terra treme, indiferente a todos nossos dramas.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

a mulher que chove

chora
chuva
com a chave
sem poder
entrar
chata
chamada
para enganar
chove
chispas
doídas
por quem
vais derramar

domingo, 20 de abril de 2008

viver

sucumbir
por algo
ser tomado
por aquilo

sexta-feira, 18 de abril de 2008

de quem pelo menos tenta

sei que a escrita não faz com que me ames, sei que esculpir o corpo não é o suficiente para que me desejes, sei que árduo trabalho e paciencioso acúmulo de riqueza não adiantam nada, sei que o melhor ambiente não te tocará, sei que as melhores frases do mundo em nada te transformam, sei que te fechas a tudo isso que em mim transborda, sei que não podes suportar a falsidade do poema, sei que toda perfeição que por ventura minha vida atinja não será o bastante para entrar em teu livre esculhambado perdidamente tolo inseguro tosco disparado aleatório patologicamente indefinido
coração
saber é inútil, correr pode fazer bem para os pulmões mesmo acabando com os joelhos, pentear os cabelos não os ordena nos dias de muita umidade, tirar cutículas é fazer com que nasçam cada vez mais, tirar pêlos é só para ficar mais lisa, usar saltos altos provoca calos, passar frio porque se esquece o casaco é para matar, esperar tua chegada é a pior idiotice de cada dia de uma vida que não se resume aos nossos encontros, amar é tolice, ficar junto é bom, perder tempo com romances impossíveis somente porque se ama literatura e pouco se tem de um corpo desejado que não vale nada além do abraço que raramente nos dá
se eu fosse um pingo bonita talvez tudo fosse bem diferente, embora em nada garantido

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Elementos

O fogo destrói rápido e ardorosamente. Da água viemos. Na terra morreremos. Respiro no teu corpo o ar que a todos sustenta.

Consome-se

O teatro acontece somente como desculpa. Encenamos o ato simplesmente porque queremos nos beijar. Amadores motivados por um só pretexto: excitar os sentidos antes de gozar. Manter o espetáculo é evitar ejaculações e toda a lassidão permitida por cordados encerramentos. Sexo é um ritual sem acordos, que não se fecha com améns. Nem mesmo com o sono. Vestida de Rainha, a mãe é a mulher que exige prazeres do homem nu, escravo dos desejos a serem saciados. Que ele lhe sirva licor, valoroso Ganimedes. E estenda-se no chão para ser seu tapete. Cadeira onde ela senta, banco onde se recosta, montaria onde encosta o púbis ardente que mais cedo ou mais tarde ele irá penetrar.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

para sua ciência

quem sabe diz para ela tudo o que não aconteceu, os sofrimentos atrozes das longas esperas, dos incógnitos desprezos, das sórdidas comparações; conta para ela as horas incontáveis reviradas na cama; as noites insones seguidas de um dia de trabalho daqueles que compromissos não se colocam só na página de uma agenda; de todos desejos individuais suprimidos em prol da felicidade maior de todo mundo; diz para ela desse amor imenso que mal cabe no corpo, no estraçalhar de orgulhos ao se compartilhar paixões, no eternamente preterimento em prol de outrem, no trabalho incansável que não escraviza quem pouco tem; podes dizer a ela que encontros de alma exigem entrega, podes dizer que só quem agüenta o tranco dessa ausência sempre inerente a quem mais se gosta consegue chegar no âmago de quem ela, por mais que controle, nunca tem

sábado, 12 de abril de 2008

se gostasse
tanto como diz
do que lhe é
oferecido
jamais
se apartaria

quinta-feira, 10 de abril de 2008

faxinensino

A boca curtida, já nem mais sente a efervescência da água. Muito chão polido com o traseiro para cima. Coluna nos pés. Joelhos rente. Tirar serragem. Aspirar pós.
As mãos raladas de raspar sujeira. Grossas de tanto torcer panos. Guardar.
Arrancar pêlos. Juntar cabelos. Dobrar e estender.
Tarefas acumuladas.
Lista de chamadas.
Grades de horário.
Matrículas.
Esperas.
Barbeiragens.
Atrasos.
Xingões.
Estremecimento.
Tormentos que podiam ser evitados.
Braguilhas que jamais deveriam ter se aberto.
A pior coisa é chegar perto de um homem e sentir cheiro de roupa mal lavada.
Louça molhada no armário. Mancha de água sanitária. Banheiro sujo ninguém merece.
Nenhum líquido limpa melhor que o braço. Ser necessária é mais do que cumprir funções. Pensar os lugares das coisas. Administrar tempo, organizar o espaço.
DoAR-
se
dar

terça-feira, 8 de abril de 2008

pathos

O sofrimento é meu. A ausência dos teus beijos e a distância do teu toque apenas dá um nome e uma cara para ele.

domingo, 6 de abril de 2008

cheia

acumulado, o trabalho empaca, só indo além

no vago domingo sem ir e vir
de compras, compromissos,
correria de pegar, levar, buscar
dia de trabalho, visto que vazio
correr atrás cansa a cabeça que não se amansa
a inquietação toda da cidade sem espaço tocada de automóveis, corpos sobre rodas
e vidas debulhadas em caixas
mal estares de cada dia
um clicar de jogos eletrônicos
listas, planos, recibos e recebimentos
conferências, aplicações, cartões
agendamentos, reuniões
editais, mensagens, jornais
avisos, consertos, apertos,
inflamações
exames
requisições
cada instante uma lembrança
de coisa a ser feita
inclusive as que garantem a festa
sem a qual nada faria sentido
mesmo que festejar em si não o tenha
senão a dança
rodada
que dá gosto a tudo isso

redenção

Uma empregada, uma diarista, uma ajudante que não encha a dona de casa de serviço.

sábado, 5 de abril de 2008

polígonos

Não é para ser um romance a três. Os amores são múltiplos e enchem bem mais que uma banheira. Relações proliferantes não cabem na cama. Apenas nos jogos teatrais de parceria madura. Uma vez casada, cansada. Não dá para viver romance a dois. Os fatores extrapolam os casais. Pares dão lugares à ímpares que jamais se reduzem ao um.
Pode o zero absoluto ser par?

quarta-feira, 2 de abril de 2008

fado

Quem se acostuma com a dor faz dela cantiga.

terça-feira, 1 de abril de 2008

amor fati

1.O que são penas, senão as misérias das quais se lamenta? O que vale a pena, senão aquilo que jamais se poderia lamentar?

2. Penas são dores guardadas. Os lamentos são a vontade de libertá-las.

3. Libertar as dores é perdoar a fonte do ferimento que as instalou.

4. Não ser ferido é quase o mesmo que não amar. Ferir-se também é possível com ódio. Nestes casos, a ferida é sempre proposital. Mas quem ama nem sempre se fere. Todo o amador machucado só o está por puro azar.

5. Para ter azar basta ter nascido.

6. Só a vontade de criar o próprio fado pode espantar o azar alojado no destino.

7. A força dos pais faz a sorte dos filhos.