quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Petrus negatio

I
Depois de me negar duas vezes só posso dizer que, após a terceira, serei crucificada. Como sou mulher minha cruz está pregada numa roda na qual me amarram de pernas abertas, para ferir com ferro onde tanto sangro. Muito mais do que a metade de uma sexta-feira, meu sangue verte de tanto em tanto, se recompondo como fígado devorado de Prometeu e prolongando meu sofrimento por anos e anos, contados pelos vincos que a dor de ter sido negada sulca em meu rosto.
II
Chorarás arrependido e por mim dedicarás, então, a tua vida. Vais me adorar por coisas que nunca fui e erguer as tuas obras para louvar o sacrifício que fiz por teu amor. Sem do meu amor teres realmente experimentado, criarás uma falácia para compensar o gozo que não bebeste e o corpo que te foi oferecido e não comeste. Triste comunhão sem carne, na qual creditas realizar aquilo que, por covardia, não assumistes.
III
Se na terceira vez, ao invés de me negares, pegares teu bastão para repelir meus crucificadores, terás meu corpo e minha alma, sopro de desejo, alegrando todos os teus dias e satisfazendo o frêmito das tuas noites. Se na terceira vez, ao invés de me negares, usares tua rede para pescar nosso alimento, cozinharei os frutos da tua força para serem servidos em beleza e regados no vinho que minha ciência é capaz de extrair. Se, na terceira vez, vieres a mim com o esplendor da tua força provarás da imensidão daquilo que te chama, sem medo de dizer que mesmo longe sempre estivestes comigo.
IV
O galo ainda não cantou.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Sofrimentos

As piores dores não duram mais do que um dia. O insuportável tem duração instantânea. Enfadar-se é eterno.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

inferno

Tem parede verde insosso com pôsteres de desenhos animados. Sete leitos, três camas e quatro berços pintados de bege já descascando e deixando entrever ferrugem. Lençóis puídos e manchados que quando sujos por vômitos e diarréias levam tempo até alguém trocar. O pingo lento dos soros nas veias dos que repousam não estremece com os berros dos que levam injeções. O chorar estridente de muitas crianças agonia as mães insones, que jazem sem notícias médicas e escasso atendimento por horas e horas sem nenhuma refeição. O telefone toca e não há quem possa atender. No corredor, a lamúria insana dos acidentados. Sem distinção entre os usuários conveniados e os do serviço público de saúde. Garantias ralas. Uma só mesa para a bolacha maria e o chá, alimento das quatro da tarde para sustentar as energias de todos até a sopa insossa que só chega as dez da noite. Nenhuma esperança de escape para os corpos apagados cuja temperatura é medida a cada três horas. Conferida pelas próprias mães. Atrás da cortina de flores e borboletas, raros procedimentos, como o banho de acento no menino de choro estranho com avó, mãe e irmã adolescente fazendo promessas esdrúxulas de lhe darem coisas. Na visão dos olhos de uma mãe despida de livros, desesperada por estar sem cadernos ou qualquer outra superfície de inscrição, o ânus em chagas de um menino abusado. Única mãe achando glorioso não existir, naquele antro, uma televisão, registra em lágrimas as cenas daquele dia insano na precariedade polvorosa do movimentado balneário. E todas as tarefas, as leituras, as respostas, as demandas profissionais, tudo suspensos pela entrada inesperada num hospital onde fazem plantão dobrado de quarenta e oito horas porque “ninguém mais quer pegar”.

sábado, 17 de janeiro de 2009

essencial






Com lírios te recebo

Quando florescem

Sem crisântemos não vivo

Muitas rosas

Só podem nos alegrar

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

profecias

Evitar a devoração carnal, se não for apatia, é repulsa. Nunca sabemos com exatidão se a paixão que consome cada partícula, ou a inexistência completa dela, existe no outro da mesma forma. Aquele que deseja quem aparentemente é incapaz de desejar sente a incerteza do desejo como desdém. O desinteresse de quem desejamos sempre nos fere. Todo corte é uma espada fria que atravessa o corpo desejante paralisando-o de dor. E há corpos tão congelados que nem mais sangram. E há homens tão infantis que ao invés desse drama romanesco preferem levar a vida a cutucar com pau. Pelo menos esses estão vivos. Os que só te querem como idéia é porque não conseguiram crescer. Os que arriscam possibilidades estão mesmo querendo. Quem tem medo não te merece. Aqueles que sabem do que se trata, abrem a camisa e fazem.

domingo, 4 de janeiro de 2009

FAGS

e esse silêncio, assassinando quem te quer no vazio atarefado dos dias que passam

se for vício, esquece, se for pleno, vem

Se tudo o que eu te dissesse fosse carne e lábio ardendo em pele, a música que escutas transbordaria de potência e nada faria com que tu se desviasse do caminho que tens a seguir. Das impossibilidades, das tuas caraminholas, dos beijos mal vividos, das travas loucas que teimas em usar, nada a dizer. Apenas vontades a doer em palavras sempre monitoradas por desejos obscuros, medos idiotas e histórias que estão para acontecer. Soa ridículo porque os bufões riem quando raios fulminam torres e os pequenos burgueses gélidos correm das mais perigosas paixões. Sem taco, nenhum acerto. Por mais ridícula que a idéia seja, um coração sempre é o alvo. Mas o tiro certo fica sempre mais embaixo. Acertar é uma questão de entrega. Ganhar o que mais se quer. Presentes não são meras escrituras, mas uma presença se mede pela força com que alguém incita nossos atos. Agir arriscadamente só por quem realmente faz um corpo derreter. Acesa, a alma fulgura e as imagens valem mais do que o simples palavrório, que só existe porque o confinamento dos sujeitos impede sopros, conjunção de santos líquidos e efetivas interjeições.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Deixar rolar

Desejo é realização. E sorte. Encontrar o que se deseja é tornar real aquilo que ao destino cabe. O que o ego sonha os deuses não concedem. Somente no brilho da entrega, sem a pressão daquilo que a instituição exige, se respeita a terra como ela exatamente é.

Duas primeiras frases são uma mensagem enviada para o Círculo do Horizonte Amplo, grupo feminino envolvido em estudos esquizo-analíticos e velhas tradições.