quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

vai

calma, corre
sem pressa
e nem querer chegar

acalma
os horrores
que todo fado mostra
e
abraça
o monstro
maculado
velho
que existe
só para
te devorar

esquece
o medo, o mundo e tudo
o que no giro
paralisa

acaba
a dor, a dúvida, a dívida
que divide
despedaça
destroça
demais

agora
quase te enterram

afasta
os fatos
falidos
que
te ferram

larga
na carga
das trombeteiras
na loucura
desse monte
de besteiras

lava
grudes
gosmas
corpos que malocam
cuspes
mágoas
poeiras que sufocam

lida
com todo badulaque
coisa querida
fruta mordida
essa doação eterna
de comida

cura
com chá
com choro
com receita
bem feita
casa
pétalas
caldas
cogumelos
framboesa
jasmim-manga
toda flor
castanha
sobremesa

limpa
e firma
carinhos
cheiro de lírio branco
banho de hortelã
beijos
beijões, beijinhos
lágrimas
sal
docinhos


volta
sem tormento
aos dias
leves
sem importância
que
antes dessa dor
eram infância

solta
o riso
o canto
a dança
o pensamento

vive
o farfalhar do vento
chocalho nas folhas
carinho em filhas
perdão de falhas
erros queimados
nos restos de presépio
palhas

cria
sem crenças
credos
de amor
sem definição

celebra
com gratidão
o fruto das vinhas
os assovios do sabiá
o descanso do sabre
a calidez crepuscular
até na hora apertada
onde rezar
não cabe

morre
sem murros
longe dos muros
mudado
o mal
a morte
amém

descansa
em paz putrefata
da sina ingrata
que uma imagem
abstrata
entende
como vida

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

cachimbo

Veio para cumprir com uma missão. Chamar a fumaça e dissipar a ânsia de tudo o que se deixa de fazer. Enquanto se fuma. Para poder parar. Deixar as tarefas de lado. Respirar, ainda que o odor pesado do tabaco.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

todo dia

Os panos estão sujos. Só há uma coisa a fazer: desencardir.

dificuldades

Aparecem porque sem elas o que parece fácil não teria a mesmo valor. O que a vida não dificulta, a humanidade inventa. Obrigações existem para não brigarmos por aquilo que realmente desejamos. Difícil é saber o que, na realidade sempre inatingível, se deseja.

recomendações

Afasta-te de quem muito mostra e não sabe o que diz. De quem acredita que o centro é o sujeito. Em quem divide as coisas entre dentro e fora. Em quem rouba o tempo dos outros para si. Em quem consegue todos os recursos inexplicavelmente. Em quem confunde o real com o atual e acha que o virtual não é real. Em quem usa os outros para se promover. Em quem enriquece a custa do trabalho alheio. Em quem vive em ambientes cibernéticos antes de cuidar da terra, do corpo e da vida. Acredita na tua intuição. Foge desse engodo. Dessas pessoas que tomam a palavra e não escutam mais ninguém. Afasta-te. Porque tua vida é coisa nova, maior em plena molecularidade. Mesmo que tudo isso te revolte, engasgue e não valha tua vergonha. Melhor ignorar do que convencer o embusteiro de sua falácia.

domingo, 16 de dezembro de 2007

moral do discurso

Amoral só poesia. Todo discurso, por mais revolucionário que seja, instaura algum tipo de moral. Mesmo que seja para acusar certas doutrinas morais. Discurso que não impõe moral é dadá. Quando as palavras entortam perspectivas. Vãs, não dizem nada. Cansamos de discursos, jamais de empregar palavras. Sofremos por causa da moral, não por causa da linguagem, por mais que a gênese desta tenha fins morais. Quando os nomes deixam de ser propriedade e tornam-se disparadores de signos, da linguagem cria-se arte.

sábado, 15 de dezembro de 2007

cadernos

Guardar textos. Toda uma vida encerrada na dança compacta da caneta nas linhas doutrinárias de um caderno. Colocar letras em tela é aprisionar a rasura que desenha o apontamento no fluxo que se imprime na superfície. Ficar nos cadernos não põe o pensamento em rede. É preciso transpor desenhos para a dimensão de pontos variáveis postos reticuladamente. Sem nenhuma garantia. Queimar cadernos é extinguir-se. Ignorar a tela é continuar desaparecido. Numa vida que parece outra. E o que presta, permanece, indiferente ao curso dos signos a exigir familiaridade com palavras e o domínio de uma língua que nunca cansamos de burlar.

caixas de livros

Livros encaixotados não dão biblioteca. Desordenados complica encontrar. Perder livros que não saem do lugar é fácil. Emprestar, só anotando. Para nunca mais perder. Fazer circular é importante.Mas há aqueles que o pesquisador jamais pode ficar sem. Bibliografia básica. Referências adoradas. Amores que só os problemas examinados explicam. Autores do coração. A quem votamos cultos estranhos. Num uso especial. Antropofágico. Livros empilhados só funcionam nas unidades encimadas superiores. Em prateleiras, servem bem. Uma vez em caixas, baús, jazem. Cadáveres fáceis de serem exumados, corpos que os insólitos descaminhos das pesquisas fazem ressurgir.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

concepto

O amor não pode ser conceito. Embora franca concepção, o amor só existe enquanto pretexto. Para a escrita. Sexo, dança, arte, o que se quiser. Qualquer desculpa para fazer do corpo outra coisa. Superfície ornada, modelada, aberta. O amor é um campo de experiências, uma matéria de estudo, um tema esgotado. Pelo amor gastamos a vida na esperança de encontrar um rosto inventado por aquilo que temos como a mais cara sensação.

amados

O valor que atribuímos a quem amamos nos aprisiona na impossibilidade de amar os desvalidos. Desafio é amar aquilo sem valor, aquilo que não apreciamos. Aí amor é coisa que mexe com o pensamento. Mesmo que esse desafio se misture com perigosas adorações. Dessas que sempre precisamos romper. Tiranias que, por hábito, tende-se a confundir com a ventura amorosa. Aquele amor que escraviza, agoniza, faz padecer. Expressa o sentido trágico, essencial para que se desenvolva arte. Por mais que doa, nunca deixará de ser apenas mote. Só vira outra coisa quando parido ao meio. Por isso precisa ser esmagado. Em si, aniquila e dilacera. Pois só pode tornar-se algo que preste tornando imprestável aquele que o usa.

do amor

Como pensar o amor? Tudo o que amamos não nos deixa besta? Não ficamos bobos diante dos amados? Fato é que, uma vez amantes, somos levados aos desassossegos do pensamento. Que sejam tolos, mas em sua tolice, ao nos tirar do lugar, arrastam tudo para um horizonte outro, onde desconhecemos amados e nós mesmos.

Trechos para Marilu Goulart,
disparados por sua proposta de dissertação de Mestrado
Amor em Fragmentos, defendida em 15 de outubro último.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

TARO NAIPE

bem diferente
do que sagrar-se a moda dos cavaleiros
treinar até virar ninja
conquistar armas em luta
ou coisa desse gênero

na ROTA,
é poder que traz discernimento
proteção
força
para colocar o melhor do pensamento
em todo tipo de ato
que dá direção
e elimina o que vem contra
a mente do ATOR
a dramatizar as cenas
fazendo da vida
algo mais
interessante
do que ela em si é

espada

Comprar não tem graça. Achar é raro. Ganhar depende do que se conquista.

saudade

Sempre daquilo que nunca se teve, embora seja nosso. Pão que, provado, jamais é possível esquecer o sabor. Só que a cada dia, fica mais longe. Mais raro. Improvável alimento pelo qual criamos um céu para imaginar eterno.

desejo, motor das artes

Não é o desejo o que permanece
sempre impensado no coração do pensamento?”[1]

Arte não se faz sem vontade, para existir arte é preciso desejo. Tanto que as concepções de desejo se aproximam das razões levantadas para que se justifique a existência da arte. Mas que o é esse tal de desejo, capaz de eternizar sensações em traços, pinceladas, moldes, textos, partituras? Paradoxal pensar um conceito para o que escapa ao intelecto, para o que não pode ser prendido a qualquer definição para o que, por experiência e não apenas por construção teórica, sabe-se que sempre foge. Porque o desejo não se encerra nas pulsões que o corporificam. Sentir um desejo é mais do que erguer a imagem de um querer, embora com esta, todo desejo se confunda.
Também é mais que uma necessidade, ainda que funcione de modo faminto, na busca por algo vital. Trata-se sim, de uma vontade, mas não qualquer vontade e sim uma vontade especial, embora jamais nitidamente específica. Vontade que volve, envolve, revolve, desenvolve, que cria volutas e volúpias. Uma vontade que vai e que vem, que divaga, que abre vagas para acolher corpos e espaços para vagar o pensamento. Um querer vago, cheio de possibilidades. Onde se esgotam as possibilidades, a arte não devém. A arte se mostra de acordo com as potências que o corpo da obra tem. O que um corpo sonoro, pictórico, literário, pode, é o que faz esse sustentar arte. O poder de um corpo artístico não se mede por ações, mas sim pelas possibilidades que ele apresenta para se tornar outro corpo, para fazer corpo com outros corpos, para transformar as percepções orgânicas em coisa incorpórea. Todo corpo, organizado ou não, físico ou metafísico, é sempre um corpo de desejo. Aquilo que um corpo deseja é o que traz em potência.
Por potência entendem-se forças virtuais que podem vir a ser ato, ação, mas ainda não se atualizaram. Possibilidades infinitivas de um corpo. O desejo não é potência, embora apresente os potenciais do corpo em que ele acontece. O desejo potencializa, sua força é potencializante, desejar é potencializar o corpo a atualizar as forças que dão sentido a sua existência. Forças estéticas, que se dão na poesia, que se compõem em arte. Qualquer forma de arte. Música que desprende o indizível, planos de cor que nome algum atingem, palavras que tocam aquilo que o discurso nem sempre consegue discorrer. Linhas que imprimem sensações, blocos intensos extraídos da onda molecular extensa, material. A arte virtualiza. O desejo faz arte, mas o desejo não é apenas virtualidade, pois atua. Não há como situar o desejo, pleno movimento, pura volição.
Enuncia-se o desejo, diz-se daquilo que se quer. Só que desejar é bem mais complexo do que um querer. Não se quer aquilo que não se deseja, mas nem todo desejo é querido. De certo modo, nunca se quer aquilo que se deseja. Se o querer exprime uma vontade razoavelmente reta, direcionada a um objeto, o desejo mostra uma vontade difusa, que não cabe definitivamente em coisa alguma. Sempre paradoxal, Desejo é figura de retórica, virada em paisagem, virada em rosto, virada discurso, virado em corpo.
Dos resquícios do discurso psicanalítico, concebe-se o desejo a partir de uma falta[2]. Uma cisão arcaica, ferida anterior à problemática divisão entre corpo e pensamento, produz zonas inconscientes, em parte desconhecidas, enganadoras. Devorado por esse desejo cuja ânsia é insaciável, o inconsciente trabalha os mesmos conteúdos da arte. Séculos e séculos passam e a tragédia continua a mesma. Castração, escravidão, a dureza do destino. A inexorabilidade do tempo, Saturno ceifador, engolidor de filhos, exilado pela glória vindoura, sofrendo pela idade que perdeu. Sempre atrás da satisfação do corpo, pois toda a força desse desejo inconsciente, libidinal, quer percorrer zonas de completude e ligação sexual, de contato reprodutivo e nutridor. O desejo é a expressão de uma economia que visa restabelecer o prazer contínuo, um conforto primordial com todos os bens necessários para a existência. Deseja-se o paraíso que se perdeu, o prazer de um Bem Supremo, a consciência dos males e o expurgo deles por técnicas de cura, perdão, misericórdia. Todo contexto judaico-cristão estabelecendo uma imagem de ascensão e queda onde os altos e baixos do desejo se medem de acordo com preceitos morais. Regras que o desejo ignora e tampouco respeita. Ao agir em função daquilo que não pode, do que não possui, esse desejo reveste o campo por onde anda com um aspecto ameaçador, assombroso. Acumulador de crimes, transgressor das Tábuas da Lei, cheio de pecados, lotado de coisas para esconder, forças a negar, o desejo não pode ser senão recalcado. Suprimido pela consciência, que se converte em eterna devedora. Ciente de cumprir com sua parte do contrato, sujeito a normas que definem usos e restrições de uso para os corpos, que somente se dão a ver por objetos parciais. Denegados, os corpos só podem comportar disfarces, roupagens, instrumentos, operações, procedimentos de aproximação e distanciamento bastante elaborados. Deseja-se o signo, jamais a matéria que o desprende. O inconsciente passa a ser compreendido como simbólico. Dele, só se sabe aquilo que representa, conteúdo sublimado na produção onírica, na criação artística, no delírio expresso no surto, no ato falho. A consciência julga que pode isso, aquilo e mais outra coisa, mas é o inconsciente, desejo cego, exilado, que faz agir. Dominar a ação é o sonho da consciência, que nada pode além de buscar interligar os dados aleatórios expulsos do corpo nos atos delirantes. O que interessa é interpretar as imagens erguidas nessas ações. Não porque a consciência precise criar imagens que mostrem as paisagens inconscientes, mas porque as imagens são materiais a serem interpretados, desvendados, analisados. Um inconsciente, o funcionamento de um individuo, é passível de ser analisado perante os atos, em especial os de fala, do paciente. Análise ou confessionário?
O discurso muda, mas a prática continua a mesma, a psicanálise se constitui como um tipo de religião[3] individualista, voltada para sujeitos específicos. Como toda religião, possui iniciados em seu discurso, cultua determinados ícones, assume relações de oferta e recebimento, está sujeita às leis da sociedade que a desenvolveu. Imbuída pelo método científico, estuda o inconsciente segundo estruturas preestabelecidas como dominantes: o Pai, o Falo, o Nome, a Lei. Como prática profissional forma aqueles que podem analisar uma psique em suas características particulares, até o mais profundo inconsciente, lidando com indivíduos, buscando as causas de seu sofrimento. Para diagnosticar as patologias, tratar os males. Aqueles que a professam, espécie de sacerdotes, guardadores das leis, detentores de muitos segredos, lidam com a complicada distinção do que pode e do que não pode ser mostrado em sociedade. Nessa perspectiva de inconsciente, a imagem enquanto símbolo de valor é o que há de mais importante. A consciência ganha poder evocando forças inconscientes sublimadas em certas representações. Pode até julgar que age, mas o faz projetando o desejo, que jamais ganha consciência, numa imagem que o re-apresenta. O poder não reside no corpo, mas no texto que dá significado para imagem que se ergue, se cultua, se denega. O que falta para o inconsciente é significação, não signos, pois esses ele emite em abundância.
Todo trabalho daquele que cria é fazer uso desses signos a fim de tornar visível o que não pode ser enxergado. No momento em que a ordem é desvendar, o que se quer é impor significados aos conteúdos inconscientes. Então, o desejo aloja-se no Significante. Nesse outro avatar, temos uma concepção de desejo que se apresenta como energia circulante, real. Mas que só pode expressar o inconsciente por meio de uma imagem cujo valor é simbólico. O que vale, nesse caso, é o que de uma imagem se extrai, o que se tem a interpretar, o discurso que ela afirma, o conteúdo que nega. O inconsciente não deixa de ser oculto, mas o é enquanto lei esotérica entranhada na linguagem. A revelação, embora também apareça nos sonhos, se dá nos chistes, nas entrelinhas daquilo que se fala, no gozo, ainda que negativo, que a imagem mostra. Os conteúdos inconscientes são registrados na linguagem, cuja função não é outra senão propagar a lei. O nome do Pai, o verbo. O poder de enunciar a Verdade, de instituir a Lei, de produzir sentido, dispor um discurso, impor uma prática. O inconsciente delira o poder, afirma o desejo que tudo pode. A psicanálise assume-se como prática nos impositivos da imagem; força que se dá a ver pelos impositivos: fala, confessa, goza. Há uma palavra de ordem, uma necessidade, a parte de um contrato cujo fim não outro senão outorgar poderes e definir deveres.
Junto a esta perspectiva, a arte é concebida como algo que faz aparecer o significado que a imagem inconsciente contém. A arte, detentora do legado imaginário, simbólica por excelência, expressa o encadeamento significante de uma estrutura que solda o desejo com o impossível.[4] Pois, o que são as imagens do inconsciente além de monstros, combinações heteróclitas, séries díspares? Não há imagem real possível, a única realidade que conhecemos é aquela que se mostra no desejo. Soldado ao impossível, o desejo parece irreal, inatingível. Concebido como algo que falta, calca-se em algo que a imagem obtura, condensa, nomeia. Nesse caso, a arte procede por uma espécie de contrato que designa aquilo que da imagem a consciência contratante pode esperar. E o que se espera, dentro desse anseio neurótico, não é encontrar o significado daquilo que a imagem ergue?
O problema surge exatamente nessa necessidade de significação. Os signos da arte necessariamente nada significam, quase nada explicam, tampouco interpretam. É a consciência, que pressiona e estrangula os fluxos inconscientes, que requer compreensões, que precisa dotar a imagem de sentido. Como nem sempre a imagem tem algo a ser compreendido, o inconsciente fica a dever. Nunca será capaz de satisfazer a necessidade consciente, que conduz a perseguições paranóicas, que aloca o desejo naquilo que a imagem registra e as significações que a consciência precisa lhe atribuir. De fato, fantasias, delírios, surtos, indicam o tipo de forças que um desejo envolve. O desejo cria númens, números, nomes, nuances. Produz um código, um deus, uma estrutura (árvore da vida, livro sagrado, sabedoria universal) que jamais consegue ser absoluta, que sempre foge. Reter essa força é obra da Necessidade, Ananke, essa figura neurótica e contagiosa[5]. Inevitável compulsão para que se realize uma vontade transcendente, o fado, o destino escolhido pelos deuses. O que está em jogo é a supressão de possibilidades, encerrando a deriva criadora em significados imaginários e significantes simbólicos que se dá a ver numa efígie (de cunho numismático) divinizada, régia. Morto, inspirado num corpo desanimado, cadáver cunhado em metal, inscrito em pedra, o desejo se alimenta de imagens.[6]
E qual imagem é erguida como absoluta? Recitada como centro do universo? Tomada como ideal de transcendência? O homem, corpo do microcosmos, semelhança de deus. Uma imagem demasiado humana. Deleuze a Guattari demonstram que é o antropomorfismo imputado ao desejo que culmina na ideologia da falta. Conceber o desejo como aquilo que falta leva a desejar fantasmas.[7] Um sistema de crenças, culto a imagens estruturadas organizadas de acordo com “a imagem e semelhança de deus”, substitui a produção desejante, maquínica, que funciona de modo assistemático. Essa concepção antropomórfica do desejo vem de acordo com a idéia humanista de arte, predominante em toda a cultura ocidental.
A preponderância de uma concepção de arte como expressão da cultura humana é o que inscreve a arte, domínio de instrumentos e campos de saber, como essência do próprio humanismo. Conta a partir de seu viés histórico, que inexoravelmente segue uma série de conquistas, avanços tecnológicos, variações lingüísticas. Inscrita numa história que mostra não-narrativas, mas a força do desejo, a necessidade de calor, de alimento, de conforto. Deseja-se aquilo que para um corpo funciona. Nem que seja para se fazer pássaro, colocando ornamento de índio, furar a carne para dar para a pele a frieza do metal.


[1] FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.519.
[2] A maior transformação desse sistema de pensamento, não isenta de contundentes críticas às concepções de inconsciente, desejo e instinto de morte em Freud, é feita pelo psicanalista Félix Guattari e pelo filósofo Gilles Deleuze em O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, publicado em 1972.
[3] “A psicanálise torna-se a formação de uma nova espécie de padres, animadores da má consciência: é a nossa doença que nos há de curar!” p.347.
[4] O anti-édipo, p.318-327.
[5] Mãe das moiras, companheira de Cronos/Saturno. Segundo o Timeu de Platão, o segundo princípio da alma, seguido do Nous, Logos, é Ananke, “a necessidade. As operações decorrentes deste princípio são descritas com palavras como: errante, dispersivo, perdido, irracional, irregular e aleatório. A necessidade atua por meio de desvios, pode-se reconhecê-la no irracional, no irresponsável, no indireto. Ela associa-se em especial aquela área da experiência incapaz de persuadida ou submetida ao comando da razão. A necessidade reside na alma como uma causa interna, produzindo perpetuamente resultados incômodos.”
Cf. http://www.rubedo.psc.br/Artigos/erosnous.html, acesso em 14/02/2007.
[6] O anti-édipo, p.353.
[7] Idem, p.308.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007








janelas para o passado
neo-barroco porto-alegrense
entardecer de inverno - velha cidade alta
Rua Duque de Caxias
Solar dos Câmaras - Porto Alegre/RS/Brasil

egos

Ninguém agüenta mais um só segundo o narcisismo desses eus que não funcionam. Apenas uma vaga imagem para se idealizar a carne. Lidar com isso não é fácil. Porque queremos uma segunda pessoa canonizada em signos óbvios onde se possa despejar o mais agudo desejo. Desvendar o íntimo da figura ideal é fetiche inevitável. Saber seus segredos, descobrir aquilo que a torna humana e menos imaginada. Não para acabar com a idolatria, sim para estar mais perto da carne intocada, almejada antes pela qualidade eleita como cânone do que pela vida que pulsa inatingível num corpo como qualquer outro. Eleger um corpo, escolher um eu para adorar, aspirar, sonhar. Mesmo sabendo que isso não serve, que só funciona para aprisionar o desejo em imagens pré-estabelecidas.

isolamento necessário

Ficar só é essencial. Mães, professoras, enfermeiras, impossível. Toda sorte de quem precisa cuidar de gente nunca consegue. Isolar-se. A parada óbvia para dar lugar ao pensamento. Desocupado das coisas, desligado de tudo o que prende o corpo em mera ação. Inativa. Essas tarefas repetitivas que levam almas para longe de si. Tiram mulheres de seus eixos, a funcionar maquinalmente afogadas em queixas. Sem viverem suas próprias vidas, viradas alunos, filhos, enfermos de todo o social. Corpo que cansa. Excesso de zelo, sem fuga exceto carregando-se de culpa. Não há desculpa. Apenas escravidão. Libertar-se? Somente no silêncio cultivado na raridade de uma hora que nunca se mantém. Enlouquecer é pouco. Sofrer não dignifica. Esquecer o outro é maldade. Ignorar a si mesmo acaba com a potência. Nenhuma saída será suficiente sem solitude. Solicitude solitária, sem a qual nada se pode. Precisar dos outros é ruim. Ser necessário é pior. Quem usa nunca percebe. Quem se doa acaba doído. Cair fora é direito.

domingo, 9 de dezembro de 2007

cadáveres

Se a morte te assombra, ri na cara dela. Bem pior que a morte é a doença e seu rastro de seqüelas. Sem morte nenhuma a cura não faz a vida livrar-se do horror que marcas de não-morte nos corpos estabelecem. Corpos que, sem arte, mesmo vivos, morrem. Porque há tantas vidas mortas quanto corpos assustados com a vida e com a morte que entre eles pulsa. Corpos temerosos que nem bem vivem e mal conseguem morrer, corpos que não dançam, não gozam e não sonham não porque não querem, mas porque não se permitem. Morrer. Porque, assombrados, pulsam no repouso eterno de tudo o que vive.

em classe

Crônicos cansaços, esgotamentos noturnos, loucura que pula no sonho que faltou. Luta armada que parte gente porque não passa de poder. Para nada.

doutores

Eles não conseguem. Não porque não querem, mas porque ficam fechados na necessidade intensa de alguma coisa nova que somente os pega porque não pega aquilo que, em sua excelência, concebem. Eles não conseguem porque querem demais e não podem aceitar aquilo que os tira de um fluxo irrepreensível de denso pensamento. Eles não conseguem porque endureceram na ponta de algo intensivo que nunca cabe no mundo, fere as pessoas, machuca quem deles algo quer extrair. E não há, desse modo, como deles fruir. Apenas incomodar-se. Porque sempre serão críticos. Nada aceitarão, a não ser que deles próprios venha ser engendrado. E entre eles, as coisas também assim se sucedem. Por isso sofrem, irremediavelmente. Desastrosamente. A ponto de se destruírem. E não conseguir se manter. Não sem inventarem outra coisa, não sem suportarem o insuportável de sua própria intensidade corpórea que neles mesmos desprezam.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

heróis

Só o são porque sofrem.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

menino

O que dói, menino, nesse arranhão de sangue fininho na pele encardida, é tua comida cheia de poeira e o ventre expandido de lombrigas. E, sem chorar, menino, olhas em meio a todas manchas que marcaram teu rosto num pedido cru de qualquer coisa que, mesmo se eu tivesse, não seria o suficiente para te dar.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

viver sem dinheiro é não ter espaço

Quem não procura vantagem política ou lucro mercadológico está frito. Em óleo velho. Tudo o que se produz, ao não entrar na lógica pública generalizada, não existe. Quem se importa?

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

escuta


Ouvir não é coisa fácil num mundo em que as sentenças estão submetidas ao olhar. Muito do que se escuta é esquecido. O que está escrito fica. Há interjeições bem vagas que criam atmosferas imprecisas. Esquecidas, permanecem numa indefinida impressão deixada pelo corpo. Mais vale o tom da voz do que a natureza do discurso. O que se imprime é canto. Somos tocados pelo som, não pelas palavras. Discursos correm mundo, não porque foram escritos e sim porque entraram em acalantos. Papai na roça, mamãe foi trabalhar e a criança, a ser assustada sempre, tem que dormir pois o bicho pega.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

valor de suporte

Do que vale uma obra, além de seu suporte? Ato em curso, as obras não falam, entretanto, muito dizem. Uma obra não é, mas uma obra pode. E para ser obra, dizem, precisa estar exposta. Mas não pode a obra, guardar-se para um tempo que ainda não a comporta? Visto que nem tudo o que se expõe é obra, uma obra pode ficar guardada. Uma obra pode ser insuportável. Nem por isso não vale. O suporte de uma obra não é exatamente aquilo que a comporta: tela, livro, palco, só para citar os mais simples. O que comporta uma obra não é, necessariamente, o que a sustenta. Tampouco o artistautor que a engendra. Nem os agentes que a propagam pelo mundo, em geral um tipo restrito de mundo. Dadaísmos que só tropicalistas pegam. Coisas que já estão velhas, mas ainda não foram completamente digeridas. O que pode, numa obra, depois de vanguardas seculares, ser novo? Como pensar obras sem a repetição incansável de seus suportes? Palavras, objetos, cacarecos, despojos vários, corpo. Instrumentos que são suportes, suportes que são instrumentos. Há algo que ainda não tenha sido usado? Reapropriado? Transfigurado? E o que vale, hoje, desenvolver uma obra senão para desdobrá-la em pensamento? E pode o pensamento, que mal suporta o devir impensado das coisas, ser obra sem suporte algum?

domingo, 2 de dezembro de 2007

obra

Se a obra de arte só existe diante de alguém, quem vê a obra é mais importante do que a coisa construída em si. Reles antropocentrismo. Obra é corpo. Vivo, morto, que frui ou ignora, impossível saber. Existe por si. A ontologia da obra só serve para discussões filosóficas que perseguem o sentido das coisas por meio de palavras. Se a qualidade da obra depende de um juízo que determinará o seu valor, arte, desejo que foge ao juízo sempre, só pode ser aquilo que não se consegue apreciar.

arte eterna

Se o tipo de arte não exige o corpo vivo, a obra pode ficar para depois. Melhor autorartista cadáver do que ego ocupando espaço. Corpo morto da pessoa que desenvolve obra pode outorgar a ela coisas que ali não há. Porque muito se faz somente porque se ganha a chance. Coisas que podem estar mortas mesmo na glória do vivente. E, quando sem chance alguma de se conseguir alguma coisa, uma obra silenciosamente se ergue, é porque não se consegue deixar de ser imortal.

sábado, 1 de dezembro de 2007

novo espaço

Todo mundo já sabe que o que interessa é o que vibra, o que ressoa. Todo mundo já sabe que os relâmpagos , as rajadas e os trovões fazem a paisagem abissal do caosmo, plano de consistência da diferença em si. Sabem que relâmpagos já foram obra? E não foi preciso encher papelada. Fazer, não sem tecnologia, uma nova paisagem em consonância com as intempéries. Tudo isso já é velho, nada disso é novidade. Onde pode se encontrar algo novo? Para novidades, nem sempre se encontra espaço. Ainda há espaço? Sabe-se, o que é espaço? O que entre corpos vibra, o que nos corpos se desenrola, o que envolve todo e qualquer corpo. E o que ressoa no espaço, se não os corpos?


Walter de Maria. The Lightening Field (1977). Quemado, Novo México.
Foto: John Cliett/© Dia Art Foundation