terça-feira, 11 de dezembro de 2007

desejo, motor das artes

Não é o desejo o que permanece
sempre impensado no coração do pensamento?”[1]

Arte não se faz sem vontade, para existir arte é preciso desejo. Tanto que as concepções de desejo se aproximam das razões levantadas para que se justifique a existência da arte. Mas que o é esse tal de desejo, capaz de eternizar sensações em traços, pinceladas, moldes, textos, partituras? Paradoxal pensar um conceito para o que escapa ao intelecto, para o que não pode ser prendido a qualquer definição para o que, por experiência e não apenas por construção teórica, sabe-se que sempre foge. Porque o desejo não se encerra nas pulsões que o corporificam. Sentir um desejo é mais do que erguer a imagem de um querer, embora com esta, todo desejo se confunda.
Também é mais que uma necessidade, ainda que funcione de modo faminto, na busca por algo vital. Trata-se sim, de uma vontade, mas não qualquer vontade e sim uma vontade especial, embora jamais nitidamente específica. Vontade que volve, envolve, revolve, desenvolve, que cria volutas e volúpias. Uma vontade que vai e que vem, que divaga, que abre vagas para acolher corpos e espaços para vagar o pensamento. Um querer vago, cheio de possibilidades. Onde se esgotam as possibilidades, a arte não devém. A arte se mostra de acordo com as potências que o corpo da obra tem. O que um corpo sonoro, pictórico, literário, pode, é o que faz esse sustentar arte. O poder de um corpo artístico não se mede por ações, mas sim pelas possibilidades que ele apresenta para se tornar outro corpo, para fazer corpo com outros corpos, para transformar as percepções orgânicas em coisa incorpórea. Todo corpo, organizado ou não, físico ou metafísico, é sempre um corpo de desejo. Aquilo que um corpo deseja é o que traz em potência.
Por potência entendem-se forças virtuais que podem vir a ser ato, ação, mas ainda não se atualizaram. Possibilidades infinitivas de um corpo. O desejo não é potência, embora apresente os potenciais do corpo em que ele acontece. O desejo potencializa, sua força é potencializante, desejar é potencializar o corpo a atualizar as forças que dão sentido a sua existência. Forças estéticas, que se dão na poesia, que se compõem em arte. Qualquer forma de arte. Música que desprende o indizível, planos de cor que nome algum atingem, palavras que tocam aquilo que o discurso nem sempre consegue discorrer. Linhas que imprimem sensações, blocos intensos extraídos da onda molecular extensa, material. A arte virtualiza. O desejo faz arte, mas o desejo não é apenas virtualidade, pois atua. Não há como situar o desejo, pleno movimento, pura volição.
Enuncia-se o desejo, diz-se daquilo que se quer. Só que desejar é bem mais complexo do que um querer. Não se quer aquilo que não se deseja, mas nem todo desejo é querido. De certo modo, nunca se quer aquilo que se deseja. Se o querer exprime uma vontade razoavelmente reta, direcionada a um objeto, o desejo mostra uma vontade difusa, que não cabe definitivamente em coisa alguma. Sempre paradoxal, Desejo é figura de retórica, virada em paisagem, virada em rosto, virada discurso, virado em corpo.
Dos resquícios do discurso psicanalítico, concebe-se o desejo a partir de uma falta[2]. Uma cisão arcaica, ferida anterior à problemática divisão entre corpo e pensamento, produz zonas inconscientes, em parte desconhecidas, enganadoras. Devorado por esse desejo cuja ânsia é insaciável, o inconsciente trabalha os mesmos conteúdos da arte. Séculos e séculos passam e a tragédia continua a mesma. Castração, escravidão, a dureza do destino. A inexorabilidade do tempo, Saturno ceifador, engolidor de filhos, exilado pela glória vindoura, sofrendo pela idade que perdeu. Sempre atrás da satisfação do corpo, pois toda a força desse desejo inconsciente, libidinal, quer percorrer zonas de completude e ligação sexual, de contato reprodutivo e nutridor. O desejo é a expressão de uma economia que visa restabelecer o prazer contínuo, um conforto primordial com todos os bens necessários para a existência. Deseja-se o paraíso que se perdeu, o prazer de um Bem Supremo, a consciência dos males e o expurgo deles por técnicas de cura, perdão, misericórdia. Todo contexto judaico-cristão estabelecendo uma imagem de ascensão e queda onde os altos e baixos do desejo se medem de acordo com preceitos morais. Regras que o desejo ignora e tampouco respeita. Ao agir em função daquilo que não pode, do que não possui, esse desejo reveste o campo por onde anda com um aspecto ameaçador, assombroso. Acumulador de crimes, transgressor das Tábuas da Lei, cheio de pecados, lotado de coisas para esconder, forças a negar, o desejo não pode ser senão recalcado. Suprimido pela consciência, que se converte em eterna devedora. Ciente de cumprir com sua parte do contrato, sujeito a normas que definem usos e restrições de uso para os corpos, que somente se dão a ver por objetos parciais. Denegados, os corpos só podem comportar disfarces, roupagens, instrumentos, operações, procedimentos de aproximação e distanciamento bastante elaborados. Deseja-se o signo, jamais a matéria que o desprende. O inconsciente passa a ser compreendido como simbólico. Dele, só se sabe aquilo que representa, conteúdo sublimado na produção onírica, na criação artística, no delírio expresso no surto, no ato falho. A consciência julga que pode isso, aquilo e mais outra coisa, mas é o inconsciente, desejo cego, exilado, que faz agir. Dominar a ação é o sonho da consciência, que nada pode além de buscar interligar os dados aleatórios expulsos do corpo nos atos delirantes. O que interessa é interpretar as imagens erguidas nessas ações. Não porque a consciência precise criar imagens que mostrem as paisagens inconscientes, mas porque as imagens são materiais a serem interpretados, desvendados, analisados. Um inconsciente, o funcionamento de um individuo, é passível de ser analisado perante os atos, em especial os de fala, do paciente. Análise ou confessionário?
O discurso muda, mas a prática continua a mesma, a psicanálise se constitui como um tipo de religião[3] individualista, voltada para sujeitos específicos. Como toda religião, possui iniciados em seu discurso, cultua determinados ícones, assume relações de oferta e recebimento, está sujeita às leis da sociedade que a desenvolveu. Imbuída pelo método científico, estuda o inconsciente segundo estruturas preestabelecidas como dominantes: o Pai, o Falo, o Nome, a Lei. Como prática profissional forma aqueles que podem analisar uma psique em suas características particulares, até o mais profundo inconsciente, lidando com indivíduos, buscando as causas de seu sofrimento. Para diagnosticar as patologias, tratar os males. Aqueles que a professam, espécie de sacerdotes, guardadores das leis, detentores de muitos segredos, lidam com a complicada distinção do que pode e do que não pode ser mostrado em sociedade. Nessa perspectiva de inconsciente, a imagem enquanto símbolo de valor é o que há de mais importante. A consciência ganha poder evocando forças inconscientes sublimadas em certas representações. Pode até julgar que age, mas o faz projetando o desejo, que jamais ganha consciência, numa imagem que o re-apresenta. O poder não reside no corpo, mas no texto que dá significado para imagem que se ergue, se cultua, se denega. O que falta para o inconsciente é significação, não signos, pois esses ele emite em abundância.
Todo trabalho daquele que cria é fazer uso desses signos a fim de tornar visível o que não pode ser enxergado. No momento em que a ordem é desvendar, o que se quer é impor significados aos conteúdos inconscientes. Então, o desejo aloja-se no Significante. Nesse outro avatar, temos uma concepção de desejo que se apresenta como energia circulante, real. Mas que só pode expressar o inconsciente por meio de uma imagem cujo valor é simbólico. O que vale, nesse caso, é o que de uma imagem se extrai, o que se tem a interpretar, o discurso que ela afirma, o conteúdo que nega. O inconsciente não deixa de ser oculto, mas o é enquanto lei esotérica entranhada na linguagem. A revelação, embora também apareça nos sonhos, se dá nos chistes, nas entrelinhas daquilo que se fala, no gozo, ainda que negativo, que a imagem mostra. Os conteúdos inconscientes são registrados na linguagem, cuja função não é outra senão propagar a lei. O nome do Pai, o verbo. O poder de enunciar a Verdade, de instituir a Lei, de produzir sentido, dispor um discurso, impor uma prática. O inconsciente delira o poder, afirma o desejo que tudo pode. A psicanálise assume-se como prática nos impositivos da imagem; força que se dá a ver pelos impositivos: fala, confessa, goza. Há uma palavra de ordem, uma necessidade, a parte de um contrato cujo fim não outro senão outorgar poderes e definir deveres.
Junto a esta perspectiva, a arte é concebida como algo que faz aparecer o significado que a imagem inconsciente contém. A arte, detentora do legado imaginário, simbólica por excelência, expressa o encadeamento significante de uma estrutura que solda o desejo com o impossível.[4] Pois, o que são as imagens do inconsciente além de monstros, combinações heteróclitas, séries díspares? Não há imagem real possível, a única realidade que conhecemos é aquela que se mostra no desejo. Soldado ao impossível, o desejo parece irreal, inatingível. Concebido como algo que falta, calca-se em algo que a imagem obtura, condensa, nomeia. Nesse caso, a arte procede por uma espécie de contrato que designa aquilo que da imagem a consciência contratante pode esperar. E o que se espera, dentro desse anseio neurótico, não é encontrar o significado daquilo que a imagem ergue?
O problema surge exatamente nessa necessidade de significação. Os signos da arte necessariamente nada significam, quase nada explicam, tampouco interpretam. É a consciência, que pressiona e estrangula os fluxos inconscientes, que requer compreensões, que precisa dotar a imagem de sentido. Como nem sempre a imagem tem algo a ser compreendido, o inconsciente fica a dever. Nunca será capaz de satisfazer a necessidade consciente, que conduz a perseguições paranóicas, que aloca o desejo naquilo que a imagem registra e as significações que a consciência precisa lhe atribuir. De fato, fantasias, delírios, surtos, indicam o tipo de forças que um desejo envolve. O desejo cria númens, números, nomes, nuances. Produz um código, um deus, uma estrutura (árvore da vida, livro sagrado, sabedoria universal) que jamais consegue ser absoluta, que sempre foge. Reter essa força é obra da Necessidade, Ananke, essa figura neurótica e contagiosa[5]. Inevitável compulsão para que se realize uma vontade transcendente, o fado, o destino escolhido pelos deuses. O que está em jogo é a supressão de possibilidades, encerrando a deriva criadora em significados imaginários e significantes simbólicos que se dá a ver numa efígie (de cunho numismático) divinizada, régia. Morto, inspirado num corpo desanimado, cadáver cunhado em metal, inscrito em pedra, o desejo se alimenta de imagens.[6]
E qual imagem é erguida como absoluta? Recitada como centro do universo? Tomada como ideal de transcendência? O homem, corpo do microcosmos, semelhança de deus. Uma imagem demasiado humana. Deleuze a Guattari demonstram que é o antropomorfismo imputado ao desejo que culmina na ideologia da falta. Conceber o desejo como aquilo que falta leva a desejar fantasmas.[7] Um sistema de crenças, culto a imagens estruturadas organizadas de acordo com “a imagem e semelhança de deus”, substitui a produção desejante, maquínica, que funciona de modo assistemático. Essa concepção antropomórfica do desejo vem de acordo com a idéia humanista de arte, predominante em toda a cultura ocidental.
A preponderância de uma concepção de arte como expressão da cultura humana é o que inscreve a arte, domínio de instrumentos e campos de saber, como essência do próprio humanismo. Conta a partir de seu viés histórico, que inexoravelmente segue uma série de conquistas, avanços tecnológicos, variações lingüísticas. Inscrita numa história que mostra não-narrativas, mas a força do desejo, a necessidade de calor, de alimento, de conforto. Deseja-se aquilo que para um corpo funciona. Nem que seja para se fazer pássaro, colocando ornamento de índio, furar a carne para dar para a pele a frieza do metal.


[1] FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.519.
[2] A maior transformação desse sistema de pensamento, não isenta de contundentes críticas às concepções de inconsciente, desejo e instinto de morte em Freud, é feita pelo psicanalista Félix Guattari e pelo filósofo Gilles Deleuze em O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, publicado em 1972.
[3] “A psicanálise torna-se a formação de uma nova espécie de padres, animadores da má consciência: é a nossa doença que nos há de curar!” p.347.
[4] O anti-édipo, p.318-327.
[5] Mãe das moiras, companheira de Cronos/Saturno. Segundo o Timeu de Platão, o segundo princípio da alma, seguido do Nous, Logos, é Ananke, “a necessidade. As operações decorrentes deste princípio são descritas com palavras como: errante, dispersivo, perdido, irracional, irregular e aleatório. A necessidade atua por meio de desvios, pode-se reconhecê-la no irracional, no irresponsável, no indireto. Ela associa-se em especial aquela área da experiência incapaz de persuadida ou submetida ao comando da razão. A necessidade reside na alma como uma causa interna, produzindo perpetuamente resultados incômodos.”
Cf. http://www.rubedo.psc.br/Artigos/erosnous.html, acesso em 14/02/2007.
[6] O anti-édipo, p.353.
[7] Idem, p.308.

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