domingo, 30 de março de 2008

o homem comum

Não consegue amar a mulher ideal. Pois ele se apaixona por mulheres hedonistas. Quer mesmo as lindas, as que todos desejam porque chamam atenção, mesmo que tenham a bunda pior do que a cara. Acabam sempre enredados com aquelas cheias de frescuras, que miam pedindo coisas e não fazem isso aquilo e aquilo mais e acabarão gordas e deitadas porque não ralam para fazer salada e cuidar de um jardim. Depois sofre por ter que prover tudo sozinho e ainda ter que agüentar bagunça, acessórios na pia do banheiro e cabelos que elas nunca juntam. Só pode amar a mulher imperfeita ainda que aparentemente perfeita porque a perfeição, quando existe, é insuportável.

a mulher ideal

Ela está sempre onde o marido sabe, limpando, arrumando ou trabalhando. É profissional reconhecida e sai basicamente para prover necessidades familiares, servir a comunidade, fazer ginástica e conseguir dinheiro. Ganha mais ou menos, mas é tão organizada com seus gastos que não consegue deixar nada faltar. Pensa todos os dias no que será o almoço, na lista dos itens a comprar, nas prioridades e necessidades gerais, nas cifras das despesas, na saúde ambiental do planeta e nas tarefas que só a ela cabem. Já não tem mais mãe. Não precisa pintar o cabelo e tem pêlos tão finos que mal precisa se depilar. Sabe a hora de trocar o óleo e resolve o problema de geometria. Se arruma para sair em quinze minutos, contando os toques na maquiagem. Pouco adoece e se recupera logo sem nenhum medicamento drástico. Nunca se envolveu em nenhum acidente sério e está protegida por uma legião de divindades. Massageia o marido dos pés a cabeça e satisfaz seus mais sórdidos desejos. Arma um templo de sexo em dois minutos e sempre aplaude o que o homem faz. É devota da deusa do amor e da beleza e tem orgasmos múltiplos que fazem o homem babar. Quando está insaciável se resolve silenciosa e sozinha. Não deixa calcinha suja no banheiro, não espalha coisas, veste-se com elegância. É bonita mas não chama a atenção. Aparenta menos idade do que tem. Não chora porque se sente feia, não fica perguntando se emagreceu ou engordou e faz sua menstruação passar despercebida. Lê nas horas vagas e fala muito pouco no telefone. Tem hábitos saudáveis, mas nunca deixa de aproveitar momentos de festim e descontrole. Escolhe muito aquilo que come, mas não deixa de beber e acompanhar as comilanças para as quais é convidada. Organiza encontros, oferece festas e agrega todo tipo de amigos. Ri de bobagens, torce pelo time do cara mesmo tendo nascido no campo adversário, não tem ciúmes de outras e quer dividir seu homem com quantas ele quiser. Adora dançar, mas não se importa em passar anos sem ir a um baile porque é lhe impossível ter uma babá. Sabe cozinhar, faz faxina pesada, carrega as compras sozinha, providencia quase todas as coisas necessárias para a sobrevivência de uma casa. Vive a desencardir espaços e torná-los agradáveis. Passa anos sem descanso da rotina, sem tempo para lamentar as viagens que nunca fará, os vôos que ficam para a velhice e as incursões que deixa para outra reencarnação. Apresenta filhos adoráveis e comportados. Lava várias coisas todos os dias, sem sofrer por nunca ter recebido intensas declarações de amor. Só delega ao marido aquilo que sabe ele ter plenamente capacidade de fazer. Mata moscas no tapa, baratas com papel higiênico na mão, espanta ratos a vassouradas. Anda no meio do temporal, se preciso manda as nuvens de chuva embora e tem força para derrubar um agressor. Lembra dos lugares onde estão as coisas, tira as piores manchas e tem sempre flores frescas sobre a mesa. Devia não reclamar nunca, mas como todo ideal é pura falsidade, uma mulher dessas só pode ser um saco.

quarta-feira, 26 de março de 2008

na mosca

porque a necessidade
é meta certeira

terça-feira, 25 de março de 2008

todos os segundos

um caderno já ouvi pá lixo virado curativo dentinho mole um lápis fora da caixa cabelo embaraçado picote de revista aponta no cesto orgânico olha bem onde joga fora essa embalagem já vou fazer a janta podes te secar olha o chão do banheiro pega um pano lista para o supermercado um caderno já devia estar guardado essa roupa no chão pilha para guardar a louça fica ai ai ai já estou indo ainda tem esse laudo para redigir acabou o açúcar olha esse livro atirado olha bem como respondes tenho que trabalhar só mais um pouquinho telefone nunca posso a água para as plantas adoça com mel pé seco sem creme a tomada caindo trinta mensagens o parafuso olha bem o estado dessa mesa meleca na mochila guarda a geléia não vou ler trabalho em tela já vou faz tu mesma que não sou tua escrava ai esse caderno aí uma linha e um resmungo não posso mais com choradeira olha a pasta aberta e as folhas amassando doze respostas rápidas que há mais o que fazer toalha molhada em cima da cama anotar despesas parem de brigar ainda tem tempo para fazer o tema pensar o almoço livro-caixa só mais essa mensagem recado importante descascar maçã facas sem fio sem terminar a aula de amanhã bem que podias a aprender a fazer isso sozinha agora não posso ensinar alguém pode trazer a bolsa marcações esquecidas ui lavar as folhas de alface não tem mais jeito mesmo não vou mandar de novo não era nessa página aquela citação pára de pular não podia mexer nessas coisas uma frase perdida deixa tocar que não dá para falar com ninguém ocupada demais para brincar é para ti mesma não podes te achar infeliz essas tintas outra hora cuidado com a cadeira isso não foi devolvido secar alface já vou agora não dá acondicionar tampar espera um pouco averiguar o congelador não liguei esqueci tenha um pouco mais de paciência esse filósofo nunca passou por tudo isso deixa um pouquinho mastiga direito ainda não consegui terminar fica um pouco só que volto assim que der nem duas páginas junta tudo que espalhou não precisa ter medo não vou dar tudo o que tu pedes olha o jeito que puxas o lençol preciso saber se vou buscar odeio essa dispersão não desliga que ainda não terminei

segunda-feira, 24 de março de 2008

gente sem arte

Na casa das flores mortas, a dor pelos horrores dos homens é motivo de chacota. Como o pensamento não rende lucros, melhor não esquentar a cabeça. O que vale é empanturrar-se de carne que churrasco não faz mal nunca. Ler demais sim. Chorar é descontrole que o bom senso abomina. Trabalhar com isso não passa de desatino, ainda mais passando dificuldades jamais reconhecidas, porque não há noção do que realmente tal tarefa trate. A abnegação do estudo parece inútil, jogar não. Ganhar dinheiro é a única glória. Mas aproveitar a vida deve ser mais do que descansar em resorts e assistir televisão. Emocionar-se com a cena de telenovela ou recebimento de troféu pode. Comentar o reality show é o assunto. Mexer na ferida, deusôlivre.

sexta-feira, 21 de março de 2008

sexta-feira santa

um bicho
dito sujo no nojo infundado
talvez por ter pulgas
e ser cinza
comer ovos onde galinheiros não há
ou simplesmente jamais se domesticar
é morto a pauladas
que importa se já agonizante
sob os olhos de quem
sem vê-lo
agraciadamente o recebeu
e sem baques
apanha junto
no escárnio alheio
por seu sofrimento
maior que o do pequeno roedor
canino que seja
mas tão grande
como a crueldade humana
que dói em toda a terra
ao maltratar a vida
mortificada ainda respirante
porque assim uma cultura exige

quinta-feira, 20 de março de 2008

Concretôneo


A insuportabilidade de um querer se dá porque este é apenas querer.






Imagem de Lygia Pape, 1974.
In: ____. Gávea de Tocaia. São paulo: Cosac e Naify, 2000, p. 60-64.

quarta-feira, 19 de março de 2008

DOR

Não vale a forca, onde em certa altura dos fatos melhor seria se pendurar. Tampouco a agonia lenta insolúvel que estraçalha o peito em vários e esmigalha qualquer possibilidade de em prazer estar. Porque há faltas feitas de desconsolo árido sem chance alguma de se dialogar. O medo é a pior desculpa. O esquivar-se dói mais do que a explícita rejeição. Crueldade expressa de pleno e nítido desinteresse. Numa ausência desconsolada, no desgaste cansado do desencontro infértil, no perder de horas que não trarão boas lembranças. Uma vez passadas, delas se terá apenas o alívio.

terça-feira, 18 de março de 2008

noite em casa com crianças

junta pega guarda pega enche acende abre salga abre pega pega fecha põe fecha abre pega põe abre mexe apaga côa põe abre pega fecha abre pega fecha quebra põe serve serve chama recomenda serve pega manda oferece recolhe põe abre guarda fecha pega limpa leva lava estende pega escova põe pega escova põe pega escova põe pega escova põe pega escova põe pega escova põe seca apaga acende manda ajuda recolhe pega limpa abre joga fecha passa acende apaga xinga corta escova ativa manda apaga beija conta canta acolhe cai acende pega escova guarda pega esfrega abre joga fecha senta urina pega enxuga abre joga fecha levanta despe deita lê dorme

domingo, 16 de março de 2008

Da primeira aula do seminário

Para criar os próprios valores é necessário viver a fragilidade das máscaras, a vacuidade das paisagens e lidar, junto a permanência dos textos, com a efemeridade de sentidos que se decompõem no uso profano e canonizado das palavras.

terça-feira, 11 de março de 2008

Escolha seu traste

O que mal sabe o teu nome. O que diz teu nome errado. O que nem sabe que tu existes. O que nunca te olha. O que ignora teus anseios. O que só te quer para satisfação própria. O que não tem noção daquilo que tu pensas. O que não se interessa pelo que tu lês. O que não se importa com o que tu achas importante. O que te quer sempre de unhas feitas e salto alto. O que se exibe para tuas amigas para parecer o bom. O que precisa chamar atenção. O que está sempre atrás de uma engenhoca último tipo. O que fica hipnotizado em frente à televisão. O que pega o controle e não pára em canal nenhum. O que escolhe filmes ruins. O que gosta de luta livre. O que se perde na frente do computador. O que olha mulheres peladas no monitor. O que tem uma modelo no papel de parede. O que fica horas entretido com joguinhos eletrônicos. O que não sai do lado da mãe. O que passa com fones nos ouvidos. O que vive de notícias. O que é viciado em jornal. O que gasta tempo com quem nem sabes no telefone. O que passa mais a mão numa moto do que no teu corpo. O que prefere uma bola do que te dar bola. O que te deixa em trabalho de parto para andar de bicicleta. O que não estende a toalha depois do banho. O que atira roupas pela casa. O que espalha o jornal, o celular, a carteira e a correspondência. O que jamais lavou uma louça. O que acha que é teu dono. O que ignora as crianças. O que é estúpido. O que se irrita com barulho. O que exige tudo limpo. O que não compra brinquedos. O que perde chaves. O que implica com a comida. O que não fala com empregadas. O incapaz de dar ordens. O que pede leite. O que come tudo e não deixa nada para ninguém. O que bebe demais. O que cai bêbado na rua. O que fuma horrores. O que não faz ginástica. O que gasta o que não tem. O que nunca te acompanha na cozinha. O que não come salada. O que só come carne. O abstêmio sem graça. O que não consegue conversar decentemente. O que quer te doutrinar. O que sempre tem razão. O que monitora teus passos. O que cuida teus horários. O que precisa saber por onde andas. O que só funciona quando tratado como criança. O que te faz de serviçal. O que te faz de faxineira. O que te faz de concubina. O que te come sem nem te beijar antes. O que te pega no seco quando tu estás dormindo. O que joga o peso do corpo no teu. O que beija mole. O que pouco te abraça. O que está sempre cansado. O que dorme enquanto tu estás falando. O que te deixa na mão. O que não carrega pacotes. O que jamais te fez uma surpresa. O que nunca te pediu em casamento. O que nem pensou em te dar uma jóia. O que raramente trouxe flores. O que esquece teu aniversário. O que nunca paga sozinho um jantar. O que traz presentes nada a ver. O que não sabe agradar. O de papo maçante. O que só sabe falar de futebol. O que só fala do trabalho dele. O que só fala dele. O que não fala. O que conta piadinhas insuportáveis. O que faz graça de trapalhão. O que se veste mal. O que peida demais. O que põe meleca na parede. O que tem chulé. O que tem mau-hálito. O que arrota. O que vem com roupa mal lavada. O que fica com caatinga embaixo do braço. O que sua bicas. O que ronca. O que tem caspa. O que perde cabelo. O que não consegue cagar contigo no banheiro. O que leva uma hora sentado no vaso. O que faz xixi sentado. O que não sabe limpar a bunda. O que mija fora do vaso. O que suja a cama. O que é gay e não se dá conta. O que não lava as próprias cuecas. O que deixa toda noite o suco fora da geladeira. O que multiplica farelos de pão. O que pinga pasta no espelho do banheiro. O que dorme no sofá. O vagabundo que não quer trabalhar. O que nunca tem grana. O que prefere ficar com os amigos do que contigo. O que não está nem aí. O que não guarda nada. O que deixa as ferramentas atiradas. O que tem o carro cheio de cacarecos. O que xinga os outros no trânsito. O que se estressa em restaurante. O que sempre está com pressa. O que quer te dominar. O que controla as ligações no teu celular. O que abre tua caixa de e-mails. O que sabe todas as tuas senhas. O que confere teus saldos. O que usa teu dinheiro. O que só compra o que está na lista. O que pechincha tudo. O que não põe nada no lixo. O que evita a própria mãe. O que nunca te convidou para nada. O incapaz de dar uma festa. O que avacalha tuas amigas. O que nunca inventou uma viagem. O que reclama da tua menstruação. O que não cumpre o que promete. O que não te deixa fumar. O que faz questão de enfatizar teus erros. O que debocha das tuas falhas. O que te faz sentir péssima. O que mostra tua feiúra. O que não te põe nos braços. O que nunca te pegou no colo. O que nunca te leva para sair. O que nunca planeja um programa. O que te faz triste e miserável. O que nunca tem tempo. O que te faz esperar. O que te deixa sozinha. O que está sempre atrás de uma nova conquista. O que está apaixonado por outra. O que fica semanas sem ligar. O que desaparece. O que tu nunca esquece. O que te faz sofrer. O que só funciona bem quando ganha corno. O que não admite traição. O que não perdoa. O que só te respeita quando é humilhado. O que só te ama quando é pisoteado. O que não luta por ti. O inseguro que não sabe nunca como agir. O que te teme. O que te machuca. O que diz, com todas as letras, que mulher perfeita é aquela não enche o saco.

sexta-feira, 7 de março de 2008

razão para o impensável

Ter emoções infantis é muito bom. Nada é sério, apesar de doer muito, pois tudo fica hiper-dimensionado. Como toda criança, prezamos o prazer ininterrupto que deleita todos os sentidos. Como qualquer mulher, esses prazeres estão ampliados a todas as concavidades que se tem no corpo. Como toda pessoa, as necessidades ditam comportamentos, principalmente os não-pensados. Sem estratégia não se vai a lugar algum. Ser espontâneo é típico do infantil apaixonado, que nunca chega na satisfação que o agir em trânsito promete. Sugar, largar, pegar. Mesmos instintos para atos de diversos significados.
Não pensar acontece quando estamos nos limites das forças mais brutas, sexuais e domésticas, e o corpo, cansado de esfregar e trabalhar para obter satisfação, não ajuda a mente a selecionar as melhores palavras. Porque, uma vez crianças, deixamos nos inundar. Sem visão para medir os riscos não nos preocupamos com a sujeira. Não respondemos pela ordem, pelo asseio geral e tampouco pela limpeza. Conosco, crianças incorrigíveis por volta dos quarenta anos, certa harmonia não se conquista.
Temer a infantilidade nossa de todo dia não adianta, só dormindo a criança nos deixa em paz. Silêncio desconhecido ao quase-velhos insones que não sabem o que tanto pula sem achar palavras que digam o que é.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Eu brinquei demais e agora não quero guardar tudo o que espalhei.

terça-feira, 4 de março de 2008

no desentendimento

Entre baratas mortas e montes de pó de cupim. Em dia de chove e não molha quando tudo fica suspenso e nada se resolve. Mágoas que somente lágrimas podem limpar. Tal qual criança fazendo manha de medo do escuro. O que dói é não te saber ao meu lado. Junto. Dentro e fora de peles menores que as almas que as circundam. Tudo o que é difícil de elaborar e precisa de tempo não serve para fomes desesperadas. Devorar-se só é bom depois do banho.

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O que se limpa nunca é da nossa conta. Dizer tudo o que vêm a cabeça é pura vontade de fusão. Mas não escolher o que o outro quer ouvir pode ser um desastre. Meio narcíseo expressar o que se sente sem pensar como isso vai ser impresso alhures. Tipo de egocentramento suficiente para produzir culpa. Se ecce homo soubesse o que move as palavras que se escancaram...

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Culpa individual é castigo impingido por culpado ulterior.

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Os deuses castigam porque invejam a perfeição. Milagroso é trabalhar. De preferência a língua dentro da boca.

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Tua boca. Única.

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Desistir somente quando nos soubermos incapazes. Lei dos fortes que medem com vontade suas capacidades. Não basta ser sagaz para se conseguir os frutos, é preciso estar capacitado para abri-los. Com facas, dentes e garras.

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Tens a sagacidade para colheita; eu tenho a prataria para o banquete.

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A paciência é necessária. O problema é que ela sempre se atrasa.