Você quer ser mais do que um conceito. Algo com mais sentido do que aquilo que você representa. Você quer ser o ideal. Mais do que apenas beleza. Forma jamais atingida na fragilidade da carne, essa que tanto dizem realizar-se senão em sórdido simulacro. Você não quer ser ilusão. Mas vive de idolatrias. A ponto de estampar o fetiche. Amuleto visual carregado para se atingir bênçãos do céu nessa anômala vida na terra. Para isso, toda uma via crucis do corpo. Você quer ser tanto como Clarice. Bela também nas palavras. Você quer extrair a questão, mesmo que para isso precise de muita maquiagem. Você quer ser mais que a máscara. Você quer uma verdade estabelecida. Sem o problema de como essa moral é fixada. Crucificada numa marca que gruda. Tatuar um monstro: a pequena mulher objeto de cabelos loiros. Com a deusa dourada ornando a pele, você quer ser Susi, Polly, Bratz, Helena, Mary, Linda. Você quer ser Cristo e ter os poderes de Deus. Eugenia social: o modelo precisa ser encarnado. Você quer a certeza de um credo e Deus lhe dá um aspecto jamais conformado em organismo. Você quer ser o divino feito carne, a coisa toda posta no corpo. Que sofre as dores do mundo e mesmo assim segue em frente de salto alto. Incômodos da reprodução de modelos, barulho da propagação de estereótipos, acúmulo de lixo. Derramamento letal de seivas sagradas. Fluxo de encontros violentos, o sangue se esparrama na pele como imagens estanques na superfície da terra. Sempre a mesma personagem, sempre a mesma historieta motivo de vaso. Sempre o padrão grego. Sempre essa ânfora de gozos prometidos. Você acaba por jejuar e fingir que está no deserto, você decide não mais pintar os cabelos, você decide não se machucar mais. Então você cai e se fere muito. A cruz que todo corpo carrega simplesmente porque inventa a própria força para, sempre sozinho, se recuperar. Mesmo que os ferimentos não passem de procedimento cirúrgico para adequar os órgãos ao que você quer. Mas tudo o que você buscou para seu corpo terminará coagulado e podre e não existirá escultura ou pintura em sua derme outrora aderente. Exterminado, o invólucro não dissolve o tipo e perdura no tempo. A intensidade de uma criação na extensão das eras: a mulher desejada, o padecimento, o cristianismo. A perversão do brinquedo, idealização modelar, no existir de um coletivo esquizo. E Barbie dá medo. Você quer ser Barbie não para ser como a Barbie porque ser uma boneca é completamente impossível. Você quer ser amada. Só isso. Adorada como o Salvador. Ressuscitada cada vez que uma menina abrir a sua caixa. Viver numa alegria de flores e cintilâncias, num mundo cor-de-rosa ao som de canções bonitas, enfeitada com acessórios de arrasar. Você queria ser adorada, comprada a qualquer preço, colecionada como relíquia, virar toda uma cultura. Seu culto de feminilidade e perfeição. Sua íntima ascese para aceitar o que você mesmo é. Nesse formato fatal. Com o par certo. Beto, Bob, Ken, Rich, Félix, Max. Deslizando sobre rodas no mais límpido sorriso. Porém você sabe o quanto é horrível porque em seu mundo tudo não é mais do que cenário de plástico e informação impressa em papelão. Você quer ser mais do que um desenho para peças industriais. Você quer casa e carro, crianças, bichinhos e amizades. Você quer ter uma linha inteira de produtos. Você quer ser a gatinha do pedaço, você quer ser satisfeita a qualquer preço. Você também quer ter profissão e todas as garantias. Você se submete a tudo. Você quer ser leve, agradável, personalizada. Seu roxo não pode ser de dor. Vermelhidões devem ser ponderadas. Todo seu estudo é dominar a luz. Essa que tudo o que quer é apenas brilhar. Nem que para isso tenha que aniquilar a matéria. E usar riscos cruzados em ângulos precisos como símbolo para suportar o despojamento de corpos. Crux et lux. Você quer ser mais do que uma fôrma. Você quer ser mais do que uma imagem. Você quer ser mais do que uma silueta. Você quer estética, não importa o que ela apresente. Só que você quer ser tudo que não incomode, por mais incômodos que o que você quer exija. Então você não pode ser derme, nem carne e nem arte. Tudo o que você quer ser é sacrifício. Tudo o que você quer ser é ato, enquanto tudo que você consegue ser é pathos.
Texto desenvolvido para obra de Vânia Mombach, Cruz de vaso grego com hematomas, reproduzida acima. Palavras compuseram partes do show Bailadeira, do grupo Maria vai com as outras.
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