sexta-feira, 14 de julho de 2017

Da morte das mães



No céu, muito alto, aqueles grandes pássaros, em pleno zênite da avenida. Corte reto no alto do que já foi chamado Morro das Cabras. Hoje o caminho que faço de moto. Essa maravilha de condução que por uns instantes nos permite olhar para o infinito no meio das tantas barreiras erguidas dentro da cidade. Voavam em círculos, eu subi novamente meu rosto envolto no capacete para ter a certeza de que eram urubus sobre minha cabeça. Sonhei em ser cadáver, mas segui meu caminho viva, sempre com olhos para frente e sentidos atentos para todos os lados, pensando que se morresse nessa semana com quase todas reuniões institucionais possíveis e num dia de Conselho seguido de Plenária, a culpa poderia recair sobre o Departamento, com respingos na Direção. Por mais exaustiva que seja a minha atual condição de coordenadora, seria injusto dizerem que me acabei no asfalto porque o trabalho está demais. Que a instituição nos mate, de muitas maneiras, a morte que nos livra dela é algo totalmente diferente. Morrer de verdade jamais terá explicação. Isso tudo acontecia justo entre a Fernandes Vieira e a Felipe Camarão. E minhas filhas... Quem molharia as plantas, limparia areia de gatos? Na sinaleira antes da Ramiro, em segundos que parecem horas, vieram a mente xs orientandxs e as singularidades pelas quais me arrisco deixarem expressar. Quem pegaria esse povo? Nem estava passando pela  Praça quando pensei que ainda não dava para morrer hoje, mal comecei a traçar um testamento, estou com umas sete pinturas inacabadas, o romance Magistério do Raio incompleto, sem revisão. Desci a Miguel Tostes depois de passar pelo número 5 da Mostardeiro com o coração batendo forte. Morrer é inviável porque não conseguiria ficar longe do Ricardo, por mais que a ideia de estar morta seja de altíssima sedução. Segui sentindo na pele o calor atípico, sensação maluca quando se levanta ainda escuro sem sofrer de frio. O tanque quase vazio da motoca atesta o quanto um inverno foi enganado, pelo menos por esses últimos e abafados dias. Entre um compromisso e o seguinte, quando fui trocar de duas para quatro rodas, tinha meia hora para ler mensagens. Não consegui escrever nada quando num dos meus grupos de mães fiquei sabendo que uma companheira nossa havia morrido. Local do velório, hora do enterro. Era uma mãe que há  nem um ano atrás estava sentada comigo conversando sobre porções de salgadinhos. Uma mãe com filhas nas idades das minhas, uma mãe da qual se sabia das dificuldades  e da doença, mas há tantas dificuldades e doenças em todas nós que jamais podemos imaginar o quanto uma mãe um dia pode deixar de estar ali. As mães estavam escrevendo mensagens emocionadas, todas pensando nas filhas, na fragilidade da vida, havia muita comoção. Minha própria filha me disse que em nenhuma outra idade como a dela uma filha precisava tanto de uma mãe. Uma criança se apoia em outros, ganha outras mães, um adulto aguenta no osso, está na ordem das coisas perder a mãe. Abraçada em minha filha, contei de uma grande amiga que tinha perdido a mãe na adolescência, realmente parecia difícil. Porém eu tinha que voltar para a rua, mas até a hora de dormir minha filha não quis ficar longe de mim. O por-do-sol foi limpo, alaranjado, brilhoso como os olhos daquela mãe, a Rosi de olhos grandes e claros, que tão precocemente nos deixava. Estranho cair de esfera luminosa, dia tão quente acabando cedo, eu vendo o sol justo sobre meu morro, num ponto alto mais longe, a lista de tarefas aumentando, a dificuldade de trabalhar instalada na luz indo embora. Agora é noite. O corpo cansado desperto pensando no ir e vir de amanhã. Propício poder compactar meu deslizamento em tão mecânica montaria, cumprir com tudo na velocidade da roda menor. De qualquer maneira, andando com as pernas ou pilotando, não há descanso enquanto não se atender a tudo que nos compete. Num átimo de visão, em pleno trânsito, tinha eu mesma desejado aquilo que logo a necessidade maior impossibilitou. Procuro palavras para entender a sincronia entre ter me visto morta, em plena Independência, e a mãe que no mesmo dia morreu.  Embora a morte esteja sempre tão perto, há dores em quem vive que fazem com que morrer possa parecer algo muito longe.

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