No
céu, muito alto, aqueles grandes pássaros, em pleno zênite da avenida. Corte
reto no alto do que já foi chamado Morro das Cabras. Hoje o caminho que faço de
moto. Essa maravilha de condução que por uns instantes nos permite olhar para o
infinito no meio das tantas barreiras erguidas dentro da cidade. Voavam em
círculos, eu subi novamente meu rosto envolto no capacete para ter a certeza de
que eram urubus sobre minha cabeça. Sonhei em ser cadáver, mas segui meu
caminho viva, sempre com olhos para frente e sentidos atentos para todos os
lados, pensando que se morresse nessa semana com quase todas reuniões institucionais
possíveis e num dia de Conselho seguido de Plenária, a culpa poderia recair
sobre o Departamento, com respingos na Direção. Por mais exaustiva que seja a
minha atual condição de coordenadora, seria injusto dizerem que me acabei no
asfalto porque o trabalho está demais. Que a instituição nos mate, de muitas
maneiras, a morte que nos livra dela é algo totalmente diferente. Morrer de
verdade jamais terá explicação. Isso tudo acontecia justo entre a Fernandes
Vieira e a Felipe Camarão. E minhas filhas... Quem molharia as plantas,
limparia areia de gatos? Na sinaleira antes da Ramiro, em segundos que parecem
horas, vieram a mente xs orientandxs e as singularidades pelas quais me arrisco
deixarem expressar. Quem pegaria esse povo? Nem estava passando pela Praça quando pensei que ainda não dava para
morrer hoje, mal comecei a traçar um testamento, estou com umas sete pinturas
inacabadas, o romance Magistério do Raio incompleto,
sem revisão. Desci a Miguel Tostes depois de passar pelo número 5 da
Mostardeiro com o coração batendo forte. Morrer é inviável porque não
conseguiria ficar longe do Ricardo, por mais que a ideia de estar morta seja de
altíssima sedução. Segui sentindo na pele o calor atípico, sensação maluca quando se levanta ainda escuro sem sofrer de frio. O tanque quase vazio da
motoca atesta o quanto um inverno foi enganado, pelo menos por esses últimos e
abafados dias. Entre um compromisso e o seguinte, quando fui trocar de duas
para quatro rodas, tinha meia hora para ler mensagens. Não consegui escrever
nada quando num dos meus grupos de mães fiquei sabendo que uma companheira
nossa havia morrido. Local do velório, hora do enterro. Era uma mãe que há nem um ano atrás estava sentada comigo
conversando sobre porções de salgadinhos. Uma mãe com filhas nas idades das
minhas, uma mãe da qual se sabia das dificuldades e da doença, mas há tantas dificuldades e
doenças em todas nós que jamais podemos imaginar o quanto uma mãe um dia pode
deixar de estar ali. As mães estavam escrevendo mensagens emocionadas, todas
pensando nas filhas, na fragilidade da vida, havia muita comoção. Minha própria
filha me disse que em nenhuma outra idade como a dela uma filha precisava tanto
de uma mãe. Uma criança se apoia em outros, ganha outras mães, um adulto
aguenta no osso, está na ordem das coisas perder a mãe. Abraçada em minha
filha, contei de uma grande amiga que tinha perdido a mãe na adolescência,
realmente parecia difícil. Porém eu tinha que voltar para a rua, mas até a hora
de dormir minha filha não quis ficar longe de mim. O por-do-sol foi limpo,
alaranjado, brilhoso como os olhos daquela mãe, a Rosi de olhos grandes e
claros, que tão precocemente nos deixava. Estranho cair de esfera luminosa, dia
tão quente acabando cedo, eu vendo o sol justo sobre meu morro, num ponto alto
mais longe, a lista de tarefas aumentando, a dificuldade de trabalhar instalada
na luz indo embora. Agora é noite. O corpo cansado desperto pensando no ir e
vir de amanhã. Propício poder compactar meu deslizamento em tão mecânica
montaria, cumprir com tudo na velocidade da roda menor. De qualquer maneira,
andando com as pernas ou pilotando, não há descanso enquanto não se atender a
tudo que nos compete. Num átimo de visão, em pleno trânsito, tinha eu mesma
desejado aquilo que logo a necessidade maior impossibilitou. Procuro palavras
para entender a sincronia entre ter me visto morta, em plena Independência, e a
mãe que no mesmo dia morreu. Embora a
morte esteja sempre tão perto, há dores em quem vive que fazem com que morrer
possa parecer algo muito longe.
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