O pior dos tormentos é a estrada que você é obrigada a tomar mesmo que não queira. Acreditando que quando ela acabar de ser duplicada as piores maldições acabarão, pois você seguirá em paz. Nunca mais espremida entre caminhões soltadores de fumaça. Tentando provar para paulistas carecas que mulheres de cabelos compridos também fazem boas ultrapassagens. Porque tal calvário ensina que uma vez atrás desses monstros pesados você não pode deixar tanta distância que, nas curtas benções dos trechos de duas vias, você não conseguirá deixá-los para trás. Tudo para respirar menos diesel e não sucumbir à agitação das crianças pelas horas prolongadas da viagem. E quando você acha que já não suporta mais traseiras de caminhão, desvios e faixa dupla impedindo ultrapassagem, trevos e rótulas que te fazem andar vários quilômetros a vinte por hora, tudo pára. Por horas e horas sem trégua. E a tortura do trânsito truncado vira os horrores da fila. A primeira hora até parece divertida. Você se espreguiça, curte súbitos silêncios, sai do carro para esticar as pernas. Acaba conversando com o motorista da frente ou de atrás, até faz amizade com o careca que não queria que você o ultrapassasse. As crianças brincam ao ar livre. Na segunda hora você já lanchou o que havia no carro e quando estiver louca para fazer xixi descobre que não há um canto no raio de cem metros onde você não seja avistada por algum caminhoneiro ávido para se divertir com sua cara. Então você percebe que é a única mulher dirigindo dez veículos para frente e cinco para trás, tudo o que é possível caminhar atrás de um local para alívio sem perder de vista as crianças, estrategicamente trancadas no carro para resolver o problema do momento. Você se arrisca barranco abaixo, enfiando o pé na lama, rezando que ninguém perto da casa aonde você chegou após a descida apareça, que sua porta e janelas não se abram e ainda vendo todos os homens olharem para você quando reaparece no acostamento. Porque chegou a terceira hora e você não suportava mais. E talvez ainda existam mais horas, pois as esperanças da segunda ligada dos motores e rolamento de alguns pneus vão por água abaixo quando tudo novamente pára. Embora você tenha andado alguns metros para frente, quase no fim da terceira hora toda a sua vida foi revista e você jura que nunca mais vai fazer esse sacrifício, até que você lembra que já tinha jurado isso na quinta hora do último engarrafamento passado nesse mesmo trecho. E parada, você chora. Porque amar algumas pessoas e ter que dirigir até elas sempre acaba na danação dos atoleiros, em carros estragados, despesas além do previsto, acusações espúrias e cansaço. Agir contra a vontade para não fazer sofrer quem amamos é escravidão. Por amor somos cativos de inválidos, velhos e crianças. Por amar gente mais fraca deixamos nossas vidas só para o trabalho que, aliás, os sustenta. Depois dessa espera absurda você só quer odiar e vai se forçar a isso para nunca mais pegar essa estrada e viver novamente a via crucis reinventada para se atingir um dito paraíso que só existe para quem vai lá egoisticamente desfrutar de uma paisagem cujo conforto só se obtém pagando. E então você trabalha mais e mais para nunca conseguir sanar o desconforto que toda sua vida é, e quando pára numa situação dessas vê que tudo está sendo em vão. Na quarta hora, quando o trânsito lentamente começa a fluir, os quilômetros e quilômetros de carros espremidos entre caminhões que estão parados na contramão lembram esses filmes de fim do mundo e invasões alienígenas, convencendo que o apocalipse acontece por causa da quantidade de veículos. Você reclama da extinção da vias férreas, que mal foram usadas por cem anos e pensa que embora você não seja jovem e só tenha andado de trem em curtos passeios, essa estrada é muito velha e você a pegou muitas e muitas vezes na vida. Rodada por milhões tais qual você, insuportável para todos como é para você, só que para você esse é o caminho dos dilaceramentos familiares de um coração pulverizado em algumas cidades do Brasil.
A pedido de meu ultramigo Julio Cesar Finger, que me ensinou o quanto os quereres do eu nada podem frente à força das circunstâncias.
A pedido de meu ultramigo Julio Cesar Finger, que me ensinou o quanto os quereres do eu nada podem frente à força das circunstâncias.
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