Quase o mesmo que aquela massa indefinida no asfalto, tão esmagada você se sente. Mas dentro de sua cabine aquecida, a 110km/h rumando de volta para a Grande Cidade, com chiclé saboroso ocupando a boca e dando canela aos pensamentos, você contempla o vasto horizonte, dos morros até as planícies, dos arrozais até as indústrias e o sol que brilha no verde esmaecido do inverno faz a morte do bicho pelo qual se passa parecer a ordem das coisas. Há vida na estrada. Mesmo que os carros inumanos ronquem acima de tudo sua indiferença. O que importa é não sentir as calças apertando o ventre. E estar com proteção na pele, para que o vidro que te encerra não sirva de lente para os raios. Décimos de graus te fariam frita. Milésimos de segundos te colocam embaixo de uma roda. Uma palavra errada para teu amor ir embora. A luz oprime, a escuridão cria muitas impossibilidades. Por isso escolhes o crepúsculo. Cerras os olhos por trás dos óculos que almejam te cair bem. Ainda tem dentes e os ossos parecem mais protegidos sob o estofamento. Teus músculos se mexem, ainda que o corpo todo esteja sentado. As dores que ele traz são todas de mau posicionamento. As lágrimas nesta estrada derramadas não foram pelo bichinho que se perdeu. Sem arriscar multas, seguimos. Vamos nos perdendo em pensamentos, em coisas não ditas, na própria morte, essa que tanto se gosta de fantasiar. Rodadas para trás, um mamífero morto faz parte do chão. Mais para frente outro. Uma vez, o impacto mortal aconteceu no seu paralama. O susto, o grito, a tristeza, nenhuma cogitação para voltar. Ver cachorro ser atropelado é o pior trauma da tua infância. Sem saber de quem é o dono. Passar pelo bolo de carne e nem ter idéia do bicho. Apenas do acastanhado, negro ou branco da pelagem. Você tem nojo, não suporta a visão da fatalidade. O destino cruel do corpo. E o horror do que a máquina é capaz de fazer ao organismo.
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