segunda-feira, 2 de junho de 2008

Visita inevitável

Com olhos encovados, rugosa como um tronco, com veias aparentes e pele cheia de sinais, a Velhice bateu na minha porta. Vinha cheia de dificuldade, fazer prevista inspeção em minha casa, tomar chá em hora impossível no meio da tarde, ignorando que tenho mil outras tarefas, acreditando que todo mundo tem o mesmo tempo que ela. Achando que gosto de ouvir como ela se disfarça na gordura, pensando que eu nada sei e não percebo o quanto se julga decrépita ao olhar o envelhecimento de meu corpo sentado ao seu lado escolhendo o que seria apropriado lhe dizer. Cedendo à tentação de seus irresistíveis docinhos glaceados, precisando muito de seu carinho, elogio suas mantas e falo com saudades de guardanapos bordados e receitas de sobremesas. No destemor da manteiga, na desmedida do açúcar e no abuso de gemas e mais gemas, conto das coisas que faço na vida só para vê-la escarnecer de como gasto minhas horas. Sem querer espio as contas nacaradas do terço saindo da bolsa surrada, onde guarda patacões de sorte, escapulários e a carteira cheia de santinhos, sempre com medo de que alguém a arranque das mãos nodosas que a seguram mesmo quando ladrão não há. Então começa a contar desgraças e lastimar as abominações desse mundo para logo desfilar as penas de seus ossos, o mal estar dos músculos, os recentes hematomas, todas as dores bem localizadas, as crises agudas, as recomendações médicas, a lista de remédios, as reclamações dos parentes, a cobrança pela minha presença. Sei que volta e meia tenho que visitá-la, adentrar-me me suas queixas, lembrar que um dia ela me tomará. É aí que penso se não preferiria a morte do que envelhecer, para então subitamente perceber que quem vez ou outra vem me visitar é Ela, se passando de Gorda ou Velha, para ver como eu posso, de outra maneira, a receber.

Fragmento da pintura Árvore e Serpente, 1998.



Sobre a velhice e o caminho transverso
Sei como ela é: anda em silêncio, esconde-se nos espelhos, é sorrateira. Faço de conta que não a vejo. Ignoro-a. Já houve tempo em que eu a considerava apenas uma Visita. Vinha de vez em quando, assim sem avisar, de surpresa, pois já não era lá muito educada. Assim como chegava, logo ia embora e eu quase a esquecia. Mas ultimamente, mesmo sabendo que lhe faço pouco caso, chega e instala-se. Fica à espreita de tudo, à espera de um momento de fragilidade para mostrar-se. Às vezes, já é logo pela manhã, se ouso encarar o espelho sobre a pia do banheiro, ela se mostra nua e crua como a verdade. Melhor disfarçar, sair devagarzinho, não encarar. Pode por a perder o meu dia. Outras vezes ela não se contenta em só aparecer, também faz comentários, dá opiniões, claro, sempre sem ser solicitada, essa Intrometida... É quase sempre em ocasiões que, distraidamente, me deparo com uma roupa maravilhosa, um sapato inacreditável e me encho entusiasmo. Estou prestes a entrar na loja. Eis que a ouço, ironicamente, sussurrando ao meu ouvido: - Será que essa roupa vai lhe servir? E esse sapato? E o equilíbrio para usar esse salto? É dureza. Porém mais duro ainda é admitir que muitas vezes ela sabe o que faz e o que diz. Melhor mesmo esse jeito de se mostrar aos poucos, de se alastrar aos poucos. Pois se o convívio é inevitável, melhor também que eu aprenda a suportá-la. Amá-la? Não! Não! Não! Isso é pedir demais.


Reverberação enviada pela aluna Ana Clara Holz, do Programa de Educação Continuada no Seminário Avançado Ascese: terceira dissertação de A Genealogia da Moral.

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